A farinha, a falácia, a mentira e o pão

Escrito por Jorge Noutel

“Como pode Medina dizer que o problema do SNS não é também a falta de dinheiro quando o Governo aprovou um orçamento do SNS para 2022 com um saldo negativo de 1.121 milhões de euros e, em maio de 2022, a dívida do SNS aos fornecedores privados já ultrapassava os 2.145 milhões de euros. “

Todos sabemos o que é uma mentira. Feita de uma pessoa para outra, ou para muitas outras, é uma afirmação cujos fatos enunciados não correspondem à verdade. Mentiras são maneiras de evitar uma possível punição ou de encobrir uma situação ridícula; pode ser também uma estratégia para não comprometer outras pessoas injustamente. Afinal, ninguém gosta de ser, ou merece ser, vítima de mentiras no que elas têm de condenável porque escondem a verdade. A vítima de uma mentira está sempre em desvantagem porque não sabe a verdade, não tem a informação correta para tomar uma decisão acertada, podendo ainda sentir-se em dúvida, num ceticismo perturbador, até que a verdade se imponha. A vítima de uma mentira age sob a influência de um ardil verbal. Acredita naquilo que supõe ser verdadeiro quando não o é. Podemos ser vitimados também por um outro tipo de desvio de pensamento que é tão perigoso e enganador quanto a mentira: a falácia.
Enquanto a mentira é uma informação falsa, uma falácia é um argumento falso, ou uma falha num argumento, ou ainda, um argumento mal direcionado ou conduzido. A origem da palavra “falaz” remete à ideia do decetivo, do fraudulento, do ardiloso, do enganador, do quimérico.
Importa que não se confunda mentiras com falácias. Mentiras são desvios ou erros propositados sobre fatos reais; falácias, por outro lado, são discursos, ou tentativas de persuadir o ouvinte ou leitor, promovendo um engano ou desvio, porque as suas estruturas de apresentação de informação não respeitam uma lógica correta ou honesta, pois foram manipuladas certas evidências ou há insuficiência de prova concreta e convincente. Uma afirmação falaciosa pode ser composta de fatos verdadeiros, mas a sua forma de apresentação conduz a conclusões erradas.
Vem tudo a propósito de uma afirmação do ministro das Finanças, Fernando Medina, quando disse que não falta dinheiro no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que o que faltam são médicos. A um governante exige-se que fale verdade e que não use e abuse de mentiras e de falácias.
É evidente que os graves problemas que o SNS enfrenta não residem apenas na falta de dinheiro. Mas, contrariamente ao que afirmou Medina, a falta de dinheiro é um dos problemas mais graves do SNS, que depois potencia os outros, como a desorganização, a desmotivação, a desresponsabilização das administrações, a promiscuidade público-privado (trabalhar em hospitais privados e no SNS para compensar os baixos salário do SNS), a dependência de tarefeiros, etc. Pelo meio, as administrações constituídas essencialmente por lugares tenentes do aparelho partidário, olhando para quem as critica ou denuncia como se de inimigos mortais se tratassem. Tudo isto está a destruir o SNS.
Como pode Medina dizer que o problema do SNS não é também a falta de dinheiro quando o Governo aprovou um orçamento do SNS para 2022 com um saldo negativo de 1.121 milhões de euros e, em maio de 2022, a dívida do SNS aos fornecedores privados já ultrapassava os 2.145 milhões de euros. Acrescentar que, ainda segundo dados oficiais do Governo, que podem ser consultados no portal transparência, a Unidade Local de Saúde da Guarda já acumulava em maio de 2022 uma dívida a fornecedores superior a 20 milhões de euros. Quando Fernando Medina afirma que o problema do SNS não é financeiro e diz, se o fosse, o resolveria rapidamente, não fala verdade, como provam os dados oficiais. Um dos problemas do SNS, não o único, mas mesmo assim grave, é precisamente a falta de dinheiro. Com remunerações cada vez mais reduzidas, e com menor poder de compra (perda de 18% de poder de compra entre 2011 e 2022), é impossível contratar médicos e impedir a sua ida para o privado ou para o estrangeiro. Seria bom lembrar que Medina não pode deixar de saber que as remunerações dos médicos não aumentaram em 11 anos. Facilmente se compreende que o problema é mesmo dinheiro e consequentemente podem abrir todos os concursos que quiserem que as vagas continuarão por preencher. Se juntarmos a isto a inexistência de uma carreira que valorize o aumento das competências dos profissionais de saúde pode-se prever que a destruição do SNS continuará para proveito do negócio privado de saúde e aumento das desigualdades. Mas o que Medina não diz é que é o Estado, os contribuintes, continuarão a patrocinar o privado e o social. Tal como não devemos duvidar que a montante de tudo isto, de todos estes problemas aqui referidos, e de outros que ficaram por mencionar, o principal consiste na fraquíssima qualidade da integridade moral e ética daqueles que nos governam. Querer fazer bom pão com fraca farinha, só por milagre. Medina aí está para no-lo recordar…

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Jorge Noutel

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