A primeira vez que ouvi Maria Bethânia a cantar “Poema Azul” fiquei embriagado pelo poder de cada palavra, pela sonoridade, pelos versos… “que beleza!”, pensei; “os brasileiros é que sabem dizer coisas assim!”. Depois descobri que não. Descobri que o belíssimo poema que a cantora brasileira musicou era de Sophia de Mello Breyner. Descobri Sophia.
Sophia de Mello Breyner Andresen foi um dos nomes maiores da poesia portuguesa do séc. XX, a primeira mulher a receber o Prémio Camões e uma referência da nossa cultura. Nasceu há cem anos e a Guarda associou-se às comemorações do centenário de forma intensa, dedicando-lhe a maior atenção e exaltando a sua poesia – sob o lema da “Terra Herdada” o SIAC4, muito mais do que o Simpósio de Arte Contemporânea, com as cores e os elementos que emanam da arte que chega de todos os lados, com «a multiplicidade das expressões artísticas e criativas», mas também com o lirismo e a linguagem intimista da poetisa. Podia ser junto ao mar, mas é na Serra que o centenário do nascimento de Sophia é mais elevado.
Enquanto escuto as intervenções na abertura do SIAC4, em especial as palavras suaves do seu neto Martim, ouço, nas profundezas do meu ser, Maria Bethânia a dizer o “Mar Sonoro” como mais ninguém o sabe dizer – «Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim./A tua beleza aumenta quando estamos sós/E tão fundo intimamente a tua voz/Segue o mais secreto bailar do meu sonho./Que momentos há em que eu suponho/Seres um milagre criado só para mim». E recordo, emocionado, tantos momentos…
Miguel Sousa Tavares, a pedido de um amigo comum, o José Manuel Barata-Feyo, aceitou o repto de colaborar com um então novo projeto editorial, O INTERIOR, de que viria a ser colunista entre 2000 e 2003. O jornalista (era então diretor da “Grande Reportagem”), filho de uma referência da nossa democracia, Francisco Sousa Tavares (que ouvi tantas vezes, com tenra idade, a defender a Democracia), e de Sophia de Mello Breyner Andresen, contribuiu para a afirmação deste jornal e ajudou-me a cumprir o desiderato de fazer um jornal regional de referência, de contribuir para o desenvolvimento social e cultural da minha região, num tempo em que a net ainda não tinha mudado o mundo e o analfabetismo ainda era uma chaga social intransponível (o concelho de Penamacor tinha 28% de analfabetos e o a da Mêda 24%, por exemplo). Entretanto, tanta coisa mudou. Mas as metamorfoses só ocorrem pela via cultural e não pode haver mudanças, devir social, transformações, sem enriquecimento cultural.
Esta semana entrevistamos (Cara-a-cara) Martim Sousa Tavares (neto de Sophia e filho do nosso antigo colaborador Miguel Sousa Tavares e de Laurinda Alves, com raízes familiares em Aldeia Velha – Sabugal), maestro e um dos responsáveis por um projeto extraordinário: a Orquestra Sem Fronteiras, sedeada em Idanha-a-Nova. Um projeto que envolve 200 jovens músicos da região e tem dado concertos em diversas localidades da “nossa” raia. Martim é o jovem maestro que gosta de descomplicar a música clássica, e vai trabalhar no próximo dia 11 com alunos do Conservatório da Guarda e comunicar musicalmente no antigo Cine-Teatro da Guarda – será mais um dos intervenientes no SIAC4. Os momentos que o jovem maestro deverá proporcionar aos participantes e assistentes, fazem parte da magia que o João Mendes Rosa está a espalhar pela cidade: com os quatro elementos (água, terra, ar e fogo), com Pedro Cabrita Reis, Zulmiro de Carvalho, José Pedro Croft e Rui Chafes, com todos os artistas participantes, e com a quintessência, a poética de Sophia, eleva-se a aura de Guarda no caminho da capitalidade cultural – porque «faz-se caminho ao andar. Ao andar se faz caminho» (António Machado) e, na cultura, as mutações são lentas mas sustentáveis. O SIAC 2019 atingiu um patamar superior em que o caminho é andar.
PS: Agustina Bessa-Luís foi a mais exuberante romancista portuguesa. Morreu aos 96 anos. Foi agraciada na Guarda com o Prémio Eduardo Lourenço em 2015. E deixou-nos uma obra imortal e extraordinária.