A aventura de pensar do nosso Eduardo Lourenço

«Expoente maior da cultura e do pensamento ibérico, partiu deixando-nos um extraordinário legado, a todos, pela sua intelectualidade, mas fundamentalmente pelo seu humanismo e singela simplicidade»

Há 20 anos, nos primeiros meses deste jornal, telefonávamos a Eduardo Lourenço que nos ditava a sua crónica mensal, que redigíamos com deleite e lhe enviávamos por fax para correção. Foi assim durante o primeiro ano deste jornal. O advento da Internet modificou essa rotina e o compromisso de colaboração foi só para o primeiro ano da vida deste semanário. Para os anais ficaram imensas conversas, sugestões e momentos memoráveis de aprendizagem e reflexão com o mais ilustre ensaísta e pensador português do séc. XX.

Então, «o oráculo de serviço da portugalidade», como escreveu Luís Miguel Queirós, ainda não era popularmente reconhecido, e menos ainda na Guarda, que então o adotou como patrono das letras e da cultura – o nosso Eduardo Lourenço, nosso de São Pedro de Rio Seco e da Guarda; nosso porque guiados pela sua mão, pelas páginas luminosas que escreveu, a literatura e a cultura que nós somos, aprendemos com ele. Foi precisamente há 20 anos, no final das comemorações do Oitavo Centenário da atribuição do foral à Guarda, que Eduardo Lourenço foi aclamado pela sua dissertação na sessão solene do Dia da Cidade, quando o filósofo refletiu sobre a Civilização Ibérica e sugeriu que «a nossa capital ousasse e imaginasse» num «diálogo necessário à nova Ibéria». O próprio Eduardo Lourenço consentiu que «parecerá um sonho excessivo para uma altiva cidade de província,» mas «só o que faz sonhar merece que se aposte nele». A capitalidade cultural e a Guarda como centro de diálogo ibérico sonhado por Eduardo Lourenço é uma construção que não pode parar e deverá seguir como um dos caminhos determinantes para o futuro da cidade, da região e da portugalidade.

Numa das entrevistas que fizemos a Eduardo Lourenço, em 2011, no contexto da homenagem que lhe foi feita na sua aldeia natal, «uma aldeia fantasma», ficámos a conhecer melhor o homem, para além do filósofo e ensaísta. Mais do que uma entrevista, foi mais uma conversa, uma aula onde o mestre nos transportou pelo mundo, pela história, pela filosofia, pela literatura, por Antero e Pessoa, pela poesia, pela sua infância e pela sua errância… porque «saí de Portugal por causa de uma espécie de curiosidade intelectual e encontrei um reino quando afinal o verdadeiro reino era este onde estou». Mas essa conversa começou pelo princípio, pelo mundo maravilhoso da infância, quando a criança que brincava feliz no pequeno universo de São Pedro de Rio Seco, uma pequena aldeia raiana de Almeida, estava longe de sonhar que viria a ser um dos mais reconhecidos e esclarecidos pensadores portugueses contemporâneos – «sem mitificar a infância, o que, aliás, seria justo e natural, foi um tempo despreocupado, todo entregue à brincadeira, irresponsável. E depois veio a entrada na escola, onde fui um menino aplicado», recordou o ensaísta, enquanto me contava que «foi aqui que fiz a 4ª Classe, embora tenha feito a 3ª na Guarda. Os primeiros dez anos da minha vida foram passados nesta aldeia, muito pobre, muito representativa do nosso atraso, no sentido civilizacional do termo. Não havia água nem eletricidade. A água só foi posta na primeira presidência de Mário Soares, a eletricidade pouco antes. Havia uma grande diferença entre São Pedro e qualquer aldeia do outro lado da fronteira. Íamos lá fazer compras e já nos anos 30 tinham eletricidade: quase 50 anos de diferença. E aquilo era o faroeste deles», disse-me entre sorrisos. De São Pedro do Rio Seco à Guarda, «que era como se fosse Nova Iorque», nessa descoberta para além do pequeno mundo da sua aldeia, da Lisboa do Colégio Militar à Coimbra dos anos 40, da geração neorealista, ou às universidades francesas onde foi leitor de Português e estudioso da cultura ibérica e onde viveu as grandes discussões ideológicas do pós-guerra, ou o regresso a um Portugal de onde nunca partiu, mas a que não pensava regressar.

Expoente maior da cultura e do pensamento ibérico, ele foi de facto «o gigante que nos desvendou Pessoa, Portugal e a Europa» e partiu deixando-nos um extraordinário legado, a todos, pela sua intelectualidade, mas fundamentalmente pelo seu humanismo e singela simplicidade, ele que foi, como disse Guilherme de Oliveira Martins, «a consciência da Europa». Obrigado professor!

 

 

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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