A arte de contar em Joaquim M. Igreja: “Contos da flor e do fruto”

Escrito por Thierry Santos

“Na sua arte de escrever contos realistas, J. M. Igreja ensaia retratar o clima socio-emocional na região da Guarda e mentalidades dos seus habitantes. “

Joaquim Igreja, professor de português e colaborador na imprensa local e regional, estreou-se este ano com um livro de 33 contos, publicado com a chancela da Âncora Editora. O volume conta com o prefácio assinado pelo amigo do autor e pedagogo de uma geração anterior, A. J. Dias de Almeida. Desde logo, quem teve e tem o privilégio de conhecer o percurso de vida destas duas personalidades pode entrar num certo horizonte de expetativas ao folhear este livro. Adivinha a atmosfera de contacto espontâneo entre professores e alunos a pairar em situações ora tocantes, ora cortantes, sobre a condição da profissão docente. Antevê, de igual modo, intrigas em torno da participação do cidadão com consciência do bem comum na vida política local, descortinando a dinâmica social no contexto guardense. Prefigura, também, quadros com a paisagem física e humana do meio provincial envolvente, onde emergem tensões banais vividas como uma condenação sisífica. Presume, ainda, a inconformidade de quem sempre tentou insuflar vida cultural a jovens e a uma comunidade que, salvo contadas exceções, só a apreciam na medida em que esse fruir possa ser folgança. Supõe, finalmente, o sentimento agridoce, suscitado por rotinas, bisbilhotices, tédios, amarguras e alegrias breves, que a interioridade, onde o peso do determinismo se faz sentir particularmente por falta de alternativa, instila na maioria dos seus habitantes. E, na verdade, o que o leitor intuiu vai poder confirmá-lo ao ler este livro.
Estruturado no tríptico DA FLOR…, DO FRUTO… …E DA RAIZ, esta trilogia (11 estórias por cada secção) apresenta-se como uma metáfora do desabrochamento e do ciclo da vida enquanto rizoma e enquanto árvore de fruto, remetendo não só para o campo da produção e transmissão de saberes pessoais como também para os domínios da reflexão crítica e do desenvolvimento de atitudes cívicas.
Mas antes de se estrear como autor, Joaquim Igreja é, antes de mais, um profissional do ensino da língua e da literatura portuguesa, um homem rodeado de livros, um leitor que dialoga com textos que leu ou ouviu. A sua poética assenta não só nas suas memórias, na sua imaginação, nos meios que observou de perto (a Castanheira, o Liceu da Guarda, Lisboa, Zamora, praias do Litoral e do Sul…), mas também na intertextualidade, ou seja, a relação existente entre um texto já estabelecido e a sua influência na criação de um novo, através de epígrafes, citações e alusões: um “romance de ceguinho”, “Os Lusíadas”, uma lenda local, uma alusão a “Manhã Submersa”, uma ideia de Italo Calvino, a letra de uma canção do francês Gabriel Yacoub, um verso de Ruy Belo, uma crónica de Valter Hugo Mãe, entre outros.
Na sua arte de escrever contos realistas, J. M. Igreja ensaia retratar o clima socio-emocional na região da Guarda e mentalidades dos seus habitantes. A urbe é descrita como «ultraconservadora», «provinciana mas acolhedora», habituada ao «frio glacial»; é essa «cidade velha, com pouca gente e gente desanimada», «que cultiva muito pouco a História e despreza os sábios». Salvo alguns contos inspirados nas lembranças do autor, as estórias inscrevem-se no tempo presente, reportando-se ao presente objetivado pelo contexto atual do mundo (um “podcast”, o Papa Francisco, a Covid-19…) e da cidade (atos de vandalismo, campanha eleitoral ao som de Vangelis, rivalidade entre irmandades religiosas, estudantes PALOP, o ecrã no jardim José de Lemos…).
Elaborados a partir de uma variedade de procedimentos narrativos, os textos de ficção apresentam-se condensados, não privilegiam as ocupações habituais dos actantes, concentram-se antes na dimensão psicológica que os individualiza. A tónica é posta assim no mundo interior das personagens, quase todas elas oriundas da classe média – professora, arquiteto, padre, advogado, médica… –, quando não são, mais raros, aldeões (de uma terra de bons sapateiros), gente desfavorecida ou um sem-abrigo. Homens e mulheres comuns debatem-se com problemas íntimos, como o desentendimento conjugal, a resiliência e a má sorte (acidente, doença, vingança reles, cartas anónimas, apanhados em flagrante na intimidade…), muitos deles vivem a braços com a monotonia de um quotidiano frustrante e esmagador. Desfiam-se estórias de vidas assombradas pela falência de projetos pessoais ou então pelas suas conquistas sofridas. Os epílogos são quase sempre insondáveis, os desfechos abertos, constituindo verdadeiros desafios de interpretação para os leitores. O que estava para acontecer não acontece, e o que parecia improvável, talvez esteja mais perto da verdade.
Quanto à linguagem, assinale-se a ironia, o humor e o registo coloquial, por vezes truculento nas falas, plasmada numa atitude de estoicismo perante o absurdo vivencial da comédia humana à maneira beirã e guardense.
Em última análise, eis um livro que ensina a arte de tornar a vida suportável sob qualquer circunstância e em qualquer lugar…

Sobre o autor

Thierry Santos

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