Agendada inicialmente para junho do passado ano e posteriormente com nova marcação para 2020, a próxima cimeira luso-espanhola será realizada na Guarda (como O Interior dava conta na sua última edição), “no final de setembro, princípio de outubro”.
A “estratégia comum de desenvolvimento transfronteiriço” será um dos pontos principais da ordem de trabalhos deste encontro para o qual foi anunciada a análise de medidas que possam robustecer os territórios transfronteiriços de forma a “podermos sair desta crise”, nas palavras do primeiro-ministro português.
Curiosamente, a Guarda volta a ser palco de um encontro luso-espanhol a realizar num contexto de crise; com perfil diferente é certo, mas que reporta de novo a uma associação da cidade mais alta de Portugal à definição de novos entendimentos e rumos por parte dos dois países ibéricos.
De recordar – tal como aqui assinalámos há dois anos atrás – que a Guarda recebeu em 1976 uma importante cimeira em que estiveram os ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e Espanha, respetivamente Melo Antunes e José Maria Areílza.
A cidade esteve no centro das atenções informativas, nacionais e internacionais, pois eram delicadas, à época, as relações luso-espanholas após a destruição da Embaixada em Lisboa, ocorrida em 1975.
Deste importante encontro deu conta o jornal A Guarda (este semanário e a Rádio Altitude eram os únicos órgãos de informação existentes na cidade) destacando-o na sua primeira página (edição de 20 de fevereiro de 1976) e descrevendo o ambiente que se vivia em 12 de fevereiro de 1976. “(…)O ministro espanhol foi aguardado em Vilar Formoso pelo ministro português. Eram 9,30 horas. Os dois diplomatas viajaram até à Guarda num helicóptero português que sobrevoou a cidade para logo em seguida aterrar na parada do R.I. 12 [Regimento de Infantaria 12]. (…) O encontro na Guarda fora mantido secreto até à meia-noite anterior. Até à tarde da véspera, nas duas capitais ibéricas constava que a reunião teria lugar em Estremoz. A Guarda escolhida para palco deste encontro, após os acontecimentos que toldaram as relações luso-espanholas, situa-se assim no ponto de partida de uma nova era de convivência peninsular. Já se fala, e com toda a razão, no “espírito da Guarda”. Afinal é desde há muito o “espírito” que domina as relações entre guardenses e espanhóis; espírito de concórdia e entendimento, de amizade, de compreensão mútua (…)”.
De acordo com o comunicado conjunto, divulgado após esta cimeira, “os dois ministros assinaram um acordo sobre a delimitação da plataforma continental, um acordo sobre a delimitação do mar territorial e da zona contínua, e, ainda, um protocolo adicionado ao acordo sobre o aproveitamento do troço internacional do Rio Minho. No decurso das conversações caracterizadas pelo espírito de amizade e boa vizinhança que os dois governos desejam dar às suas relações, foi passado em revista o estado das relações culturais entre os dois países (…). No domínio das questões fronteiriças, examinou-se, de modo especial o projeto de construção de uma ponte internacional sobre o Rio Guadiana entre Vila Real de Santo António e Ayamonte (…). Exprimiu-se o desejo mútuo de uma maior colaboração técnica e administrativa em matéria aduaneira, com o objectivo de facilitar o tráfego internacional entre os dois países (…)”.
Como observaria César Oliveira, “o espírito da Guarda mais não foi do que o esforço luso-espanhol para ultrapassar as tensões e a carga de potenciais conflitos entre os dois Estados, na segurança de que em Espanha parecia ser irreversível o caminho para a democracia e de que em Portugal as tentações esquerdistas e radicais estavam duradouramente afastadas”.
A Guarda ficou, desta maneira, como um marco de referência no processo de normalização das relações luso-espanholas e marcou, indubitavelmente, o segundo ano do pós-25 de Abril.
Nesta próxima cimeira o panorama político, económico e social é bem diferente, com outro tipo de problemas a exigirem uma leitura objetiva da realidade, soluções céleres, pragmatismo, cooperação e permanente solidariedade.
É mais do que tempo para terminar o esquecimento dos territórios transfronteiriços e do interior, planificando e desencadeando medidas que potenciem o seu desenvolvimento nas várias vertentes; não os reduzindo, conjuntura e estruturalmente, a meros refúgios geográficos em tempo de pandemia ou a episódicos fluxos de visitantes por insegurança noutras rotas turísticas.
A nossa cidade que tem uma forte marca de cooperação, consubstanciada no Centro de Estudos Ibéricos (CEI), deverá, uma vez mais, evidenciar, “o espírito da Guarda” e olhar muito mais para além do que a sua altitude permite, aproveitando este momento para capitalizar maior projeção e protagonizar a defesa de toda uma região; sobretudo agora que (na sequência da aprovação, em 2 de setembro de 2019 da candidatura da região da Serra da Estrela) está oficializado, com a recente aprovação pelo Conselho Executivo da UNESCO, o Geopark Estrela.
Para que ocorra o robustecimento, a que aludimos nas primeiras linhas deste apontamento, é importante a decisão política, a eficácia das medidas, a perceção clara dos objetivos fundamentais e dos projetos mais adequados; mas é igualmente necessária uma permanente articulação de entidades públicas e privadas, o assumir de responsabilidades, o envolvimento de todos num período em que é primordial o empenho coletivo para se ultrapassar uma crise (com contornos ainda não definidos) para se consolidar o presente e ganhar o futuro.
Esperemos que a Guarda fique, de novo, sublinhada na história da cooperação ibérica e no desenvolvimento das regiões fronteiriças.