A memória é trapaceira, turva e inquieta. A memória resgata grandes fatias de sonhos e embacia a realidade. Eu estava no avião quando comecei a ler “O Barulho das Coisas ao Cair”. Não estava na sua Colômbia, mas cruzei-me com a vida de personagens que, por força do destino ou da Divina Providência, também se encontravam ligadas a esse aparelho, que ora nos dá asas para voar, ora nos dá asas para cair. A queda, desta vez, se acontecesse, seria catastrófica, mas li, algures, que a melhor forma de começar a conhecer uma cidade é vê-la do alto.
Colômbia é, para a maior parte das pessoas, o país do ouro, do café, da aguardente e do Gabo; para outros, uma massa de sonhadores fascinados pelos aviões; e, para alguns, uma morada contaminada pelo narcotraficante mais famoso do mundo e o seu paraíso pessoal: la Hacienda Nápoles. A bonança não andou perto deste território durante muito tempo e, no livro, podemos sentir esse corpo estranho, ainda por cuidar, ora por culpa de um passado mal amado, ora por inflamar uma geração, demasiado exposta à guerra e aos seus focos de tráfico.
Antonio Yammara é a personagem que nos ajuda a percorrer parte desse lugar mitológico, mas, a par disso, existe Ricardo Laverde, que, logo no início, se apresenta como uma incógnita: «O bilhar não era para ele um passatempo, nem sequer um concurso, mas a única forma que Laverde tinha naquele momento de estar em sociedade: o barulho das bolas ao chocar, das contas de madeira nos cabos, dos gizes azuis ao esfregarem-se contra as pontas de couro velho, tudo isso constituía a sua vida pública. Fora daqueles corredores, sem um taco de bilhar na mão, Laverde era incapaz de ter uma conversa corrente, para não falar de uma relação”. Quem seria, então, este novo amigo de Yammara? Um fantasma? Um nómada? Ou, apenas, alguém que morreu como as asas queimadas de Ícaro?».
Inicialmente, sabemos da sua prisão, mas ignoramos a causa; conhecemos o seu convívio predilecto, mas, em muitos aspectos, a sua vida estancou; espreitamos parte de uma sombra secreta, mas não reconhecemos o corpo. E como uma súplica à espera de abrigo, Laverde tenta voltar a voar, mas, desta vez, sem o conforto dos aviões, que sempre soube pilotar: «A Elena era o amor da minha vida. E separámo-nos, não queríamos separar-nos, mas separámo-nos. A vida separou-nos, a vida tem dessas coisas. Fiz merda. Fiz merda e separámo-nos. Mas o que importa não é fazer merda, Yammara, ouça-me com atenção, o que importa não é fazer merda, mas saber remediar a merda. Ainda que o tempo tenha passado, sejam lá os anos que forem, nunca é tarde para consertar o que estragámos».
Aqui, as avarias provocam demasiado ruído, as memórias desafiam a gravidade e, no trânsito dos pensamentos, assiste-se a várias tombos. Primeiro, ao de Laverde; depois, ao do avião; e, mais tarde, a queda do próprio país: «Nos meus anos de vida ninguém soube explicar-me de forma convincente, para lá de banais causas históricas, o porquê de um país escolher como capital a sua cidade mais remota e escondida. Nós, os naturais de Bogotá, não temos a culpa de sermos fechados e frios e distantes, pois assim é a nossa cidade (…) Gostaria de saber isso, quantos saíram da minha cidade a sentir que de uma forma ou de outra se estavam a salvar, e quantos sentiram ao salvar-se que traíam alguma coisa, que se convertiam nas ratazanas do proverbial barco pelo facto de fugirem de uma cidade incendiada». O narrador conhece os motivos da sua escrita; o autor fala, bem alto, sobre os medos humanos, sem por isso simplificar a complexidade dos acontecimentos; e o leitor apenas terá de fazer a descolagem para aterrar sobre a Ciudad de Sueño, de Aurelio Arturo: «Yo os contaré que un día vi arder entre la noche/ una loca ciudad soberbia y populosa,/ yo, sin mover los párpados, la miré desplomarse,/ caer, cual bajo un casco un pétalo de rosa».
Melanie Alves*
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com