P – De Celorico da Beira ao aquartelamento AK-47 em Moçambique, que história nos conta com esta obra?
R – Nos anos 90 contaram-me um episódio sucedido no Quartel-General em Nampula, Moçambique, depois do acordo de cessar-fogo com a FRELIMO. Recentemente, com mais tempo para pensar no assunto, escrevi o livro.
P – É uma história de vida ficcionada, mas baseada em factos reais? Por que decidiu contá-la?
R – Quando escolhi esse episódio singular como núcleo de uma narrativa sobre a Guerra do Ultramar (incluindo “o antes, o durante e o depois”), para não ficar influenciado, não procurei conhecer os detalhes do caso real. Mantive Moçambique como cenário da guerra, apesar de nunca lá ter estado, talvez por ser um desafio adicional. Tracei uma linha de tempo que se estende desde os últimos anos da Monarquia até 1995. Criei as personagens da narrativa inspirando-me em pessoas que conheci, me impressionaram e foram determinantes na minha educação e formação. Além disso, mencionei acontecimentos que fui observando na segunda metade do século XX e outros que pesquisei na Internet e em livros, jornais e revistas. Por vezes, sem outra fonte, valeu-me a minha imaginação. O Programa Fim do Império (Liga dos Combatentes, Comissão Portuguesa de História Militar e Câmara Municipal de Oeiras) aceitou o livro, integrando-o na sua coleção, o que muito me honrou.
P – Porque escolheu uma aldeia de Celorico da Beira para ponto de partida deste romance histórico?
R – Eu teria de localizar a história em alguma zona de Portugal. Rejeitei de imediato as grandes cidades, Lisboa e Porto. Pensei na Beira Alta – onde venho com alguma frequência por razões familiares – e na sua proximidade a Coimbra (que me seria útil na narrativa, pela Universidade, Seminário e ligação ao Brasil, a Minas Gerais). Assim, chamei Santa Rita a uma aldeia do concelho de Celorico da Beira, onde viviam os Fragas, a família central da história. O Brasil surge devido à forte corrente de emigração durante a primeira metade do século XX e à figura de Jorge Amado, que adotei como referência desde que li “Os Velhos Marinheiros”.
P – Acha que ainda há muito por contar sobre guerra do Ultramar?
R – O Programa Fim do Império tinha, na data do seu 10° aniversário, 37 livros publicados sob a sua égide. Adicionalmente, fiz um breve inventário de livros publicados: o Portal dos Veteranos da Guerra do Ultramar UTW apresenta uma listagem com mais de 600 autores, que em livros e outros documentos – totalizando bem acima de 1.000 obras – escreveram sobre a Guerra do Ultramar. A magnífica série televisiva “A Guerra”, de Joaquim Furtado, é um contributo notável para esse período da nossa História. Existem ainda muitos sites com informação segura, nomeadamente, a RTP Arquivos, a Guerra Colonial 1961–1974 e o recente “Os 500 Dias do Fim Império”, também da RTP. Acredito que ainda possa haver algumas histórias a contar, mas admito que o substancial deve estar feito. Na minha opinião, o que falta são os leitores! Não os que viveram esses tempos, mas os das gerações seguintes. Lamentavelmente, a divulgação é tímida, certamente por receio da conotação com o regime que caiu no 25 de Abril e daí poder ser entendida com uma forma de exaltação da Guerra de África. Por via da ignorância e da inconsistência de argumentação, é politicamente incorreto contar, com verdade, o nosso passado recente!
P – No seu caso, como viveu esse conflito e o regresso a Portugal?
R – No 25 de Abril de 1974 estava em Luanda. Soube dos acontecimentos à hora de almoço, por um amigo que trabalhava na Petrangol: “os Belgas lá da empresa disseram-me que se passa qualquer confusão em Lisboa. Ouviram na rádio!”. Depois, acompanhei os acontecimentos, a chegada e instalação em Luanda dos 3 Movimentos, FNLA, MPLA e UNITA, e os primeiros conflitos entre esses movimentos. Enfim, senti que era espectador de momentos que ficariam para a história. Em janeiro de 1975, os Acordos de Alvor e o Governo de Transição trouxeram alguma esperança, que logo desapareceu nas semanas seguintes!
P – Qual foi o episódio que mais o marcou na sua vivência em África?
R – Enquanto vivi em Angola (de 1969 a 1976), embora tenha estado próximo da Guerra, nunca cheguei a enfrentá-la. Contudo, observei os dolorosos acontecimentos da descolonização e da ponte aérea de regresso a Portugal.
Assisti ao esvaziamento da cidade, ao ruído dos “carpinteiros improvisados” a construir caixotes (esgotaram-se os pregos e martelos em Luanda!), à longa fila de automóveis e camiões desde o Largo da Maria da Fonte até ao Porto de Luanda. Muitos, depois de carregarem os seus bens nos navios, seguiam de imediato para o aeroporto e embarcavam na ponte aérea. A 10 de novembro de 1975 – na prática, o último dia do Império Colonial Português – por feliz coincidência, tive o privilégio de acompanhar os militares que transportaram a bandeira portuguesa desde a Fortaleza de São Miguel até ao navio da Marinha que a trouxe para Portugal. Nessa noite e no dia seguinte, assisti em Luanda à Independência de Angola, regressando a Portugal seis meses depois.
Perfil de Carlos Manuel Duarte:
Autor do livro “Moçambique, Aquartelamento AK-47 – Uma história singular”
Naturalidade: Barcelos
Idade: 76 anos
Profissão: Engenheiro Químico-Industrial pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto em 1968
Currículo: Após estágios profissionais na República da Irlanda, fui convidado para Assistente de Engenharia Química na Universidade de Luanda; Frequentou o Curso de Oficiais Milicianos na Escola de Aplicação Militar e no Grupo de Artilharia de Campanha, em Nova Lisboa; Trabalhou no Estado (Universidade de Luanda, Instituto de Desenvolvimento Industrial de Angola, Complexo Agro-Industrial do Cachão, Gabinete da Área de Sines, Director-Geral da Indústria, Fábrica Escola Irmãos Stephens) e em empresas privadas (Renault Portuguesa, CUF Têxteis e Grupo Secil); Atualmente está reformado, exercendo atividades em regime pro bono.
Filme preferido: não consigo responder! “Apocalypse Now”, “A Quadrilha Selvagem”, “O Caçador”, “O Paciente Inglês” …
Hobbies: Fotografia, filmar – tem filmes no Youtube sobre o “Eléctrico 28” e os “Ascensores de Lisboa”. O seu sítio na Beira Alta é Aldeia Viçosa (Guarda).