Cara a Cara

«O voluntariado formou-me como pessoa e permitiu-me viver vidas muito diferentes da minha»

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Escrito por Efigénia Marques

P – O que a inspirou neste novo livro “A Menina Invisível”, que apresentou na segunda-feira na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço? R – A inspiração foi uma imagem que me perseguiu e não me largou: a de uma criança que, ao sofrer um abuso, se esconde tanto dentro do corpo que ele desaparece. A menina torna-se invisível quando quer e, assim, o corpo físico, fraco, pequeno, nunca mais a tornará vulnerável. Este foi o ponto de partida do romance. Mas assim que comecei a escrever, a palavra “invisível” começou a seduzir-me porque, na verdade, invisível é tudo o que nós não vemos e Alice, uma menina que vivia num casebre isolado, pobre, no começo do século XX, não era afinal já invisível antes de o ser? Por isso, “A Menina Invisível” não é só sobre a Alice e sobre a invisibilidade do corpo. Há mais dois personagens centrais, Pedro e Emília, e na relação entre os três, no atravessar da infância à vida adulta, outras invisibilidades são exploradas: a saúde mental, com as suas próprias feridas invisíveis, a invisibilidade das pessoas que sentimos ao nosso lado, mas que por uma razão ou outra nos abandonaram, a invisibilidade política da mulher… Tudo invisibilidades menos fantásticas que povoam de sobra a nossa humanidade. P – Até que ponto foi influenciado pela sua experiência no voluntariado?  R – A experiência de voluntariado – e não só, porque não fui só voluntária, mas cooperante internacional remunerada – formou-me como pessoa, deu-me ferramentas para ver e analisar o mundo e permitiu-me viver vidas muito diferentes da minha. Também me permitiu sair de mim e colocar dúvidas em todas as minhas certezas, tornando-me menos resistente à diferença. Quando escrevo, essa experiência dá textura aos personagens, a vivências que não são minhas, e permite-me entrar em cabeças distintas. Como é natural, aumentou também o meu leque de histórias, de aventuras e desventuras, das possibilidades e limitações da vida. P – É o seu segundo romance, no espaço de um ano, depois de “No País do Silêncio”. Há alguma justificação? Existe uma linha condutora? R – Linha condutora, creio que não há nenhuma. Os dois romances têm uma génese completamente diferente. “No País do Silêncio” nasceu de um objetivo: o de desenterrar o nosso passado recente para forçar o leitor a revivê-lo, convidando-o a perceber a realidade diária de um país sem liberdade e as consequências dessas mordaças. “A Menina Invisível” não teve um propósito, foi antes uma imagem que me assaltou e exigiu que eu a explorasse. De alguma forma, parece-me que eu escolhi o “No País do Silêncio” e “A Menina Invisível” escolheu-me a mim. P – Como caracterizaria este romance? R – “A Menina Invisível” não é fácil de caracterizar, creio, talvez precisamente por ter tido uma vida própria inicialmente, e se me ter imposto mais do que eu o ter procurado. Tem elementos de fantasia, porque há um corpo que desaparece fisicamente, mas está assente num contexto histórico que acompanha os tempos do 31 de janeiro de 1991 ao regicídio de 1908. Aborda a passagem da juventude à idade adulta de três personagens diferentes, com lugares distintos na sociedade de então, que lutam com problemas que, sendo da época, nem todos deixaram de ser atuais, ou relevantes para entender o que deles sobra na sociedade de hoje. E aqui refiro-me principalmente à forma como a mulher é relegada para determinados espaços socais, enquanto outros lhe são vedados, ou tidos como pouco próprios. Mas não é um romance histórico, nem um livro de fantasia. É uma história de três vidas inquietas, três personagens cujas vidas se cruzam numa aldeia do Douro, que crescem em paralelo, orientadas por sonhos e objetivos que talvez não sejam verdadeiramente delas, e com os quais se confrontam na idade adulta, quando se voltam a cruzar em Lisboa, nos conturbados anos finais da monarquia. P – Já tem novo livro em vista? R – Sim, tenho. Uma premissa e dois personagens. Ando a conviver com eles, mas ainda não me contaram tudo o que são, nem tudo o que me querem dizer. P – É uma viajante pelo mundo, mas não escreveu um livro sobre viagens?  R – Ainda não, mas é provável que venha a existir. Tenho medo de me lançar a escrevê-lo porque tenho uma péssima memória. Nesse sentido, estou muito mais à vontade com a ficção! Talvez faça um livro de viagens semiautobiográfico, semificção. P – Desde de fora como vê o país e a região? R – Tenho muito carinho pelo meu país e pela Beira. “No País do Silêncio”, nas entrelinhas, é uma carta de amor a ambos. Parte dele passa-se na Beira e a Guarda é mencionada também. Gosto das paisagens e das gentes, da humildade e da hospitalidade da Beira, do calor humano e verdadeira dedicação ao amigo. Identifico-as no livro. A Beira está lá como parte da história, quase uma entidade. Mas nem tudo são rosas. Também vejo, à distância e com pena, características menos nobres. Acima de tudo, um certo conservadorismo que não permite crescer, que abafa talentos, que limita potenciais. Um cheiro a mofo necessário para ser reconhecido. Uma pequenez no pensar, no arriscar, no defender. E a propagação da mediocridade em todos os sectores da sociedade. Infelizmente, característica que não é só nossa. ___________________________________________________________________ RITA CRUS

Idade: 47 anos Naturalidade: Guarda Profissão: Escritora Residência: Kuala Lumpur, Malásia Currículo: Cooperante internacional de 1999 a 2004, fisioterapeuta de 2008 até agora, escritora com primeiro livro publicado em 2021. Livro preferido: Um de vários: “It’s a Wonderful Life”, Frank Capra Filme preferido: Um de vários: “Ryszard Kapuscinski”, Império Hobbies: Ler, correr, Yoga, caminhadas, aprender Coreano, cinema

Sobre o autor

Efigénia Marques

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