Admiro aqueles que conseguem descansar de um período árduo de trabalho sem saírem do sítio desse trabalho. No entanto, entrar em férias e passar à rotina no bairro entre a casa e o café e arranjar com isso refrigério suficiente para a alma é milagre que não alcanço. Aliás, a saída do nosso meio através da feira, da romaria ou da peregrinação foi desde tempos ancestrais a realização deste anseio profundo do homem: procurar no exterior do seu meio uma realização espiritual através de experiências significativas em locais sagrados ou sacralizados. O “click” espiritual realiza-se hoje, para além dos espetáculos, em experiências vividas em espaços naturais ou valorizados historicamente. Viajar em grupos é bom, mas sozinho também não se desdenha. E se estiver alguém à nossa espera com informação enquadradora sai-se de lá cheio, pronto depois a uma visita sozinho à descoberta para ver o resto. Finalmente, uma viagem não funciona se for o folhear de uma enciclopédia. Ela deve ser a mistura bem doseada de surpresa e de reconhecimento, de solidão e companhia, de informação e afetividade, pelo que o convívio, nem que seja mínimo, tem de estar presente.
No turismo cultural os guias de viagens em livro são instrumentos fundamentais e sempre senti vontade de os colecionar, desde que os destinos estivessem alcançáveis ou mesmo que eles estivessem longe. Alguns lá estão, quase virgens, à espera que apareça a ocasião de visitar Bruxelas, Praga ou Londres. Outros já foram folheados várias vezes e, embora partam de uma perspetiva particular, são sempre benvindos na véspera de partir nem que seja para confrontar com a realidade encontrada. E ajudam-nos a ter sonhos todo o ano. Para a nossa região, o meu batismo de fogo nos guias de viagens foi o livro de Francisco Hipólito Raposo “Beira Alta – com um abraço total à Serra da Estrela” (Guias Mobil – Nos caminhos de Portugal), de 1987. Tudo o que era essencial num roteiro aí aparecia: um trajeto bem definido, a descrição informada dos pontos assinaláveis, um pendor afetivo de admiração e às vezes de enlevo, o lado crítico aos atos de predação do homem sobre o natural ou o construído. É isso que ainda procuro hoje nos guias de viagem: um apoio, um “anda cá ver”, uma posição crítica.
Outra coisa é a literatura de viagens. Sobre a nossa região há pouco disso. Ver e criar após a emoção de ver é a questão. Um livro desses pode nascer de um repente, de uma adoração, de um ódio visceral ou de uma vontade imensa de partilhar. Acabo de ler o recentemente publicado “Portugalmente – Peregrinação da Lapa a Foz Côa”, de Jorge Carvalheira. O que move alguém a escrever sobre os passeios que fez recentemente em concelhos como Foz Côa, Figueira, Trancoso, Celorico e Aguiar? Neste caso, um profundo sentido do dever (como cidadão) de dizer o que pensa sobre o que “os outros” fizeram do nosso distrito nas últimas décadas: os que levaram à emigração para a Europa nos anos 60 e 70; os que sacaram fundos europeus para construir obras “sem jeito” ou para fingir que criavam cabeças de gado; os que levaram à tragédia de África ou que guardaram recordações magnificentes do Ultramar. É um olhar de crónica magoada e pessimista este de Jorge Carvalheira, que leva à letra o título de “Peregrinação” que deu à sua obra. Os monumentos e outros locais de interesse paisagístico são obnubilados na maior parte da obra por este ponto de vista que parece que procura a desgraça e o confronto, numa pose de superioridade moral perante o inaceitável trajeto do “desenvolvimento” regional, mas também numa aceitação impotente do fado lusitano. O formato grande do livro, o papel couché e a capa dura, as numerosas fotografias dão ao livro um empolamento de guia de viagens e iludem o leitor, que esperará um “anda cá admirar as maravilhas da Beira” e depois encontrará a cada página a ilustração de uma penosa peregrinação negada por esta apresentação pomposa. As fotografias, em excesso, a oscilar entre o mau e o muito bom, mal aproveitadas e, infelizmente, mal paginadas, com uma legendagem que reenvia ao texto fora de tempo, não ajudam muito a leitura mas a linguagem de Carvalheira é admirável num circuito de reflexões entre a realidade e a efabulação, entre as mentes do autor e do leitor, ao jeito de Saramago. A obra aparenta uma vindicta pessoal contra o destino como se fosse possível vingar a vida numa viagem. Lê-se, por isso, como um romance.
Feliz ano 2013!
Por: Joaquim Igreja