Arquivo

Ventoso

1. O nascimento do romance, enquanto forma original de criação literária, está intrinsecamente ligado ao triunfo de um corpo político feito à medida da nova sociedade burguesa, em meados do séc. XVII. Refiro-me ao Ocidente, claro está. Pois que, entre outros exemplos, o Japão do séc. XI já nos havia presenteado com o fabuloso “Romance do Genji”. Ora, esse corpo político pressupõe: 1º que a segurança seja assegurada pela delegação da força nas mãos do Estado, em regime de exclusividade; 2º que os indivíduos, para quem a vida pública se manifesta sob o disfarce da necessidade, adquiram um renovado interesse pela sua vida privada e pelo seu destino pessoal, eliminadas as antigas conexões naturais com os seus semelhantes; 3º que esses mesmos indivíduos só possam julgar a sua vida pessoal comparando-a com a dos outros, tomando essa relação a forma de concorrência; 4º que, implicitamente – e porque dotados todos eles pela natureza de igual capacidade e protegidos uns dos outros pelo Estado, que regulamenta os negócios públicos e os interesses em presença sob a justificação da necessidade – apenas o acaso seja apto a decidir quem vencerá. Significativamente, esta elevação do acaso à posição de árbitro decisivo da vida viria a atingir o seu ponto mais alto no séc. XIX. Como resultado, surgiu um novo género de literatura, que acompanhou o declínio do drama: o romance. É que o drama perdeu o sentido num mundo sem acção, enquanto o romance podia tratar adequadamente os destinos das pessoas, fossem elas vítimas da necessidade ou favoritas da sorte. Balzac, de quem li recentemente “O Pai Goriot” (1834), demonstrou todo o alcance do novo género. E chegou a apresentar, nas 88 obras que compõe a sua “Comédia Humana”, as paixões humanas como o destino do homem: sem vício nem virtude, nem razão, nem livre-arbítrio. Só o romance, na sua completa maturidade, podia pregar o novo evangelho da paixão do homem pelo seu próprio destino. E através dela, o criador literário tentava traçar uma distinção ente si e os outros, proteger-se contra a desumanidade da boa e da má sorte, desenvolver, em suma, todos os dons da sensibilidade moderna. Tão desesperadamente necessária à dignidade humana. Mas exigindo que um homem seja, pelo menos, uma vítima, se não puder ser outra coisa.

2. “Bebe-se chá para esquecer o bulício do mundo”, dizia há muitos séculos o poeta chinês T’ien Yi-Heng. Uma lenda bem conhecida diz-nos que o chá foi descoberto por mero acaso. Por volta do ano 3000 A.C., quando o mítico Imperador chinês Shen Nong se encontrava na floresta fervendo água para beber, algumas folhas de camellia sinensis cairam no pote. O inexcedível aroma produzido imediatamente cativou o imperador, pois bastou um gole para lhe ser revelado o “segredo do chá”. Numa versão mais alargada da história, já antes Shen Nong experimentava com frequência provar infusões de ervas para identificar as que tivessem valor medicinal. Várias vezes ficou intoxicado. Mas eis que finalmente descobriu uma planta que ajudava a eliminar as toxinas do seu organismo: essa planta, veio-se a saber, era o chá. Que se tornou, desde então, parte integrante da medicina popular chinesa. Mais tarde, a preparação e o consumo do chá foram associados a um complexo ritual em todo o Oriente, especialmente no Japão. Por outro lado, a “espuma do jade líquido”, como era cantado pelos poetas chineses da dinastia do Sul, foi objecto de um Chaking (ou Sagrada Escritura do Chá), obra do século VIII, onde Lu Yu, filósofo da época Tang, compila uma espécie de Código do Chá. Kakuzo Okakura, em “O Livro do Chá”, obra que já aqui mencionei, faz-lhe uma abundante referência. Introduzido na Europa no séc. XVII, foi tema, logo em 1685, de um Tratado, da autoria de Philippe Dufour.

O chá é uma das minhas predilecções recentes. Um saber empírico com um sabor teórico, ou vice-versa, que se completam numa curiosidade e exigência crescentes.

3. Nas últimas eleições presidenciais, apoiei activamente a candidatura de Manuel Alegre. No entanto, desde cedo percebi o que os seus 1 200 000 votos representavam. Ou seja, pouco mais do que um capital de risco à mercê da voragem dos partidos e do pequenos e médios entertainers da política. Ou então, dito de outra forma, uma semi-vitória de Pirro. Que incomodou muita gente, é certo, mas incompatível com qualquer arranjo contabilístico a posteriori, ou qualquer apropriação para outros fins que não aqueles onde se esgotou. Alegre até deu uma mãozinha a este cenário. Não rompeu com o PS, como lhe competiria, nem abriu mão de qualquer nova alternativa política. As razões até são fáceis de explicar. A mais óbvia de todas é a sua “institucionalização” no interior do PS. O termo designa, precisamente, a incapacidade protagonizada por um prisioneiro de longa data em organizar a sua vida no exterior da prisão. A razão mais simples é o trivial esgotamento do seu discurso e do seu projecto político. Entretanto, o BE lançou uma OPA gigantesca tendo Alegre como objecto. A qual foi aceite, tendo como palco o célebre comício conjunto no Teatro da Trindade. Na prática, Alegre é hoje pouco mais do que um refém de luxo do BE. A sua validade política expirou quando optou pela evolução na continuidade. É um genuíno produto de um partido político, em modo parlamentar, mas que tenta desesperadamente camuflar o seu percurso. Aparecendo então como um candidato da “sociedade civil” e dos “cidadãos”. Por todas as razões apontadas, e porque as diferenças saltam à vista, a minha atenção vai agora para a candidatura de Fernando Nobre. À qual estarei atento a partir de agora.

Por: António Godinho Gil

Sobre o autor

Leave a Reply