1. Chega a momento em que, para nosso bem, não nos podemos tomar realmente a sério. Ficaremos assim dispensados da tragédia, ou do peso. Mas não da acção que fende o nervo do tempo. De modo a que nos baste a nossa própria medida e o nosso próprio milagre. Ora, há várias formas de lá chegar. Recomendo uma espécie de fitness existencial, de modo a exercitar a curiosidade, o despojamento, a multiplicidade, a dúvida. Objectivo ambicioso e tarefa árdua, dirão alguns. É verdade. Porém, contas feitas, compensam o esforço e a exigência. Entre outros, há um exercício simples que cometo com regularidade. Em digressão pela web, visito fóruns, páginas, blogues e murais, onde predominam escolhas estéticas, políticas e, sobretudo, ideológicas, absolutamente diversas das minhas. E o passeio tem várias fases. A primeira é a da guerrilha. Já que, em contacto com tais conteúdos, nasce em mim a indignação, a ira, a urgência em vir à tribuna em nome da fala, ao comentário em nome do cálculo, e à arena em nome da espada, ainda que verbal. É o guerreiro que se manifesta. A representação de um poder central e imóvel. Que se indigna e surpreende, mas não abre mão de nada. Assim, nesse mundo paralelo, aponto o dedo a várias realidades, interdependentes e circulares: a visão sectária da sociedade, não como uma unidade polifacetada, mas como um mosaico disforme; a divulgação e apologia de linguagens e expressões artísticas que nada me dizem; o partidarismo como signo identitário pobre, em termos cívicos; a apologia acrítica das excelsas virtudes da quem governa ou está na oposição; a partilha de discursos e intervenções de dirigentes partidários, porta vozes da verdade absoluta e iluminados por uma inspiração divina; confusão entre a actividade cívica, a militância clubística e a propaganda; a hostilização acintosa dos adversários políticos, com base em leituras apressadas, meias verdades e manipulação de dados; a intolerância e, não raro, o simples dogmatismo; por vezes, um toque holístico a adoçar a empreitada; diabolização da alteridade e visão a preto e branco da luta política, onde “nós” somos infalíveis e justos e os “outros” são malfeitores encartados. Em suma, o espírito de seita triunfando em toda a linha. O segundo estádio do processo é o medo vigilante. Quando me ocorre que esta balcanização crispada do debate público vai muito para lá da partilha de entendimentos diversos sobre o bem comum e da própria luta política. Porquê? Basta estar atento à pobreza das narrativas repetidas vezes sem conta, sem distanciamento, sem humor, sem vergonha, sem dúvida, sem autonomia, sem agilidade. Por vezes, encontro um argumento bem gizado, um naco de excelência, um assomo de lucidez, que aceito sem reservas. Todavia, a regra é a de um mundo exclusivo, aterrorizador, totalitário, distorcido, pautado por uma ignorância estridente e cheia de si, robustecido pela frustração e onde a razão não entra. Um mundo supostamente aberto e cortês, mas onde afinal prevalece o ódio, a arrogância e o autismo. O temor é real, pois suspeito fortemente que, se esta religiosidade enviesada e atípica triunfasse completamente, teria que passar a uma espécie de clandestinidade. Por último, advém a compaixão. Ou seja, o culminar e a aceitação do desafio inicial: chegar à farinha da mesma massa que a todos nos molda. Que ocorre quando a realidade observada vai deixando de perturbar, ou causar desconforto. É o trajecto do vôo da águia. Da sua visão única, espaçada ou cirúrgica, consoante as necessidades. Onde, aos poucos, a névoa se vai desvanecendo e a trama ganha brilho, peso, altura. No processo, torna-se claro que, para uma percepção da realidade em sintonia fina – mecânica, sensorial ou cognitiva – o que conta são os níveis de consciência. Pouco importa a destreza mental. E ainda menos o acervo de conhecimento. Labirinto onde a ignorância melhor se dissimula. Obviamente, essa percepção anuncia uma inteligência discreta, mas ambiciosa. Uma delicadeza imperturbável. Fundamental para, entre outras coisas, reconhecer o que me pode comover, ajudar a pensar, atravessar como um quebra-gelo, aproximar, aderir ao momento, equilibrar dinamicamente. E quando poiso, olho para esses meus semelhantes como se fosse a primeira vez. Vejo a sua fragilidade, onde antes descobria a intolerância. A insegurança, onde antes pairava o sectarismo. A preguiça, onde antes dominava a fanfarronice. O ímpeto pueril, onde antes só via definhamento argumentativo. A simples falta de imaginação, onde antes apontei a propaganda. Ou de coragem, onde antes escarnecia do conforto da seita. A dieta, em vez do movimento. O colinho da escravidão, em vez do anseio de liberdade. O vazio, em vez da fome. O ruído do mundo, em vez do ruído da mente. A superfície, onde, afinal, se oculta a profundidade. Brilhando.
2. Marcelo Rebelo de Sousa é o mestre do disfarce. E da ilusão. Tem tudo para ser o Houdini da III República. Ou quase. Só lhe falta passar no teste derradeiro: desaparecer misteriosamente, à vista de todos. É uma arte ao alcance de poucos. Se for levada a sério, é claro. Numa semana, Marcelo é o Presidente Rei. Na seguinte, o grande feiticeiro da tribo. Por vezes, adivinha-se um ternurento avô cantigas. Sem desdenhar a pose de incansável mecenas da cultura, ao jeito de um Sforza doméstico. Marcelo sabe que tem a maioria do país rendido ao seu espectáculo. Pois, ainda que sem o saber, vê nele o xamã que tudo cura. O escudo protector que tudo deflecte: a incerteza do momento político internacional, a falta de consistência da governação, a aridez da oposição, as tempestades imprevisíveis dos mercados financeiros. A ama de leite que sussurra doces histórias de embalar. O demiurgo que contemporiza. O soberano que é magnânimo. Que dá colinho a um país infantilizado.
Por: António Godinho Gil