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Ventoso

1. Em “A Foreign Affair” (“A Sua Melhor Missão”, 1948) Billy Wilder brinda-nos com mais uma das suas notáveis comédias românticas. Neste caso, o cenário escolhido – Berlim em escombros no rescaldo da II Guerra – era pouco dado a romantismos. Puro engano… O enredo passa pela ocupação militar da Alemanha, mas sobretudo pelo programa intenso de desnazificação empreendido pelos Aliados. Que avançaram com um plano que passava, no imediato, pela democratização, reconstrução de padrões cívicos e instituições representativas, desnazificação, descartelização e reconstrução das infra-estruturas de produção e de transportes. O objectivo era assim, em vez de punir economicamente a Alemanha, amarrá-la a uma nova Europa política e integra-la no mercado europeu e mundial. Mas Wilder percebeu as armadilhas e as fragilidades deste programa. E sem nunca afrontar a dinâmica da “vitória contra o mal”, de modo extremamente subtil aponta os perigos de um regime imposto à força, sem atender à especificidade cultural e social da Alemanha. No filme, uma delegação do Congresso americano visita Berlim, afim de elaborar um relatório sobre a “moral” das tropas. Ou seja, para bom entendedor, qual a dimensão do mercado negro (uma das canções interpretadas por Marlene chama-se precisamente “Black Market”), da prostituição (Vd. “O Casamento de Maria Braun”, de Fassbinder), da corrupção e da exploração das populações civis, fustigadas pela fome, pela penúria e pelo desespero… Marlene Dietrich é Erika von Schluetow, cantora de cabaré (what else?) e alegadamente bem relacionada na alta roda nazi. Da referida delegação faz parte uma congressista, Phoebe Frost (Jean Arthur), minuciosa e implacável, que decide investigar quem protege Erika. Nada mais nada menos do que John Pringle (John Lund), capitão do exército americano, seu amante e angariador de bens de consumo no mercado paralelo (a portuguesíssima “candonga”). Que acaba por se apaixonar pela puritana congressista, para afinal proteger Erika. Estão assim reunidos os ingredientes para a trama romanesca que se segue. Numa tocante sequência de cabaret, Marlene Dietrich tem um dos seus grandes momentos no cinema, quando interpreta o tema “Ilusions”, mais tarde recuperado por Utte Lemper, numa versão espantosa.

2. Onde param os solícitos e profusos parabenizadores que, na quadra natalícia, se multiplicaram em desejos de “felicidades”, “um ano cheio de realizações”, “prosperidades”, “grandes realizações”, “muita paz e muito amor”, “tudo do melhor”, “sonhos concretizados”, etc. etc,, para todos os clientes e amigos? Será que ninguém tem, no mínimo, a curiosidade em acompanhar o cumprimento do seu voto? Quantos se mostrarão dispostos a monitorizar os seus auspícios? Quantos terão um gesto que possa negar a generosidade protocolar?Será que alguém está disposto a barrar o passo aos gestos vazios e formalidades ocas?

3. Há dias, recebi um telefonema singular. Do outro lado, uma voz apressada e como que impelida por uma necessidade real e imperativa. A insistência em pormenores não intrusivos acabou por a tornar, no mínimo, credível. O português, embora fluente, denotava uma origem italiana. Após uma curta exposição, a verdadeira questão era se, como preliminar para a resolução de um problema, sabia de algum detective privado na cidade onde vivo. Ou se poderia eu mesmo, nas vestes do lobo, fazer esse serviço. Ora, todos sabemos, ou pelo menos suspeitamos, que existem dois tipos de perguntas: as que só são perigosas até serem respondidas e as que passam a sê-lo a partir daí. Naveguei portanto à cautela, em vista dos escolhos e, quiçá, uma terra desconhecida. E num esgar caracteristicamente bogartiano, onde o entusiasmo se mascara atrás do cinismo, para ser levado com alguma bonomia, respondeu Marlowe, ocultado pela névoa do fumo do cigarro: “depende, ELA é loira ou morena?”

4. Para que nos possamos mover com ligeireza e tino, necessário se torna, se preciso dando o corpo ao manifesto, perceber duas coisas fundamentais:

1º. porque é que o mundo é uma “piolheira” – ou seja, nas sábias palavras de Voltaire, deixá-lo-emos, tolo e mau, tal qual era quando cá entrámos. Citação com que Camilo encerra um dos seus romances mais felizes: “A Brasileira de Prazins”.

2º. porque é que continuamos a proclamar sublimes propósitos e a publicar aforismos edificantes (raramente praticados pelos seus autores) como se nada fosse connosco.

Por: António Godinho Gil

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