Arquivo

Ventoso

1. Não me surpreende a costumeira indignação dos cry babies saudosos do bom velho agit prop, por causa de uma afirmação de Passos Coelho numa conferência académica acerca da congénita pieguice dos portugueses. Alguns desses portugueses, uns por osmose com catecismos de outros tempos, já em fase de morte assistida, outros por obrigação “revolucionária”, outros por ressabiamento, outros porque atrás de uma ilusão de que l´air du temps ainda é o seu particular air du temps, esganiçaram-se num alvoroço de capoeira contra a recomendação da Passos Coelho. Devo dizer que não me surpreendeu a regulamentar halitosis ideológica propalada pelos chefes da esquerda “revolucionária” com assento parlamentar. No entanto, confesso que a má citação de Camões por Zorrinho, líder parlamentar do PS, me deixou boquiaberto. Seja como for, o 1º ministro acertou em cheio. Juntamente com a inveja, a fome social e o medo da cidadania, a pieguice é um dos sintomas mais graves da degenerescência nacional. Uma coisa é a luta individual, anónima, muitas vezes heróica, de milhões de portugueses, por uma vida digna. Isso é sério e intangível. Outra coisa é a sua caricatura: precisamente a pieguice. Ou seja, o hábito da queixinha, da eterna lamentação, da revolta desperdiçada, do papaguear de catecismos exóticos, decalcados do tempo em que a palavra ainda fundava o poder. Ou seja, um colete-de-forças letal. Tudo isto enquanto as guitarras tangem e se canta o fado…

2. O decano da música Mikis Theodorakis fez-nos chegar recentemente uma mensagem do Além. À primeira vista, poderia ser confundida com um “remake” do enigma da esfinge. Ou uma transmissão em código. Ou um mandamento bíblico que ficou esquecido durante uns milénios em alguma caverna do Sinai. Doce engano. O homem falou mesmo a sério. E disse esta coisa impressionante: “Se os povos da Europa não se levantarem, os bancos trarão o fascismo de volta”. Ups! De imediato, as redes sociais replicaram a ideia com fervor. As bandeiras agitaram-se. O Doutor Louçã ergueu-se do sofá como um gato pronto para a caçada. O Professor Rosas arrumou os tarecos, alguns livros, incluindo as obras completas de Engels, calçou as botas de caminhada e contra o “façizmo” gritou “presente!”. Um frémito percorreu as almas dos humilhados e ofendidos, dos seus amiguinhos irreverentes da melhor extracção burguesa, uns bacanos esquerdalhos muito bem na vida. Uma euforia inusitada invadiu os saudosos das massas marchando contra o capital, devidamente pastoreadas, é claro. Ou seja, uma iconografia museológica pintada de vermelho, onde a História se precipita, avassaladora, e acaba nesse preciso momento. Imagino os “povos da Europa”, do Atlântico ao Báltico, erguendo-se devagar, empunhar um estandarte, coçar os tomates, cercar os bancos, capturar os banqueiros, essa “escumalha exploradora”, defenestrar alguns, lançar outros pela janela (como o bom povo de Lisboa fez com o respectivo bispo, em 1383, empurrando-o do alto da torre da Sé), enxovalhar outros tantos, e por aí adiante. Os “povos” estariam assim vingados, ressarcidos do que lhes foi sempre negado. Uma estranha harmonia ficaria a pairar no céu. Os “façiztas” tiveram o que mereciam! Os “povos”, essa mistura de Babel, seriam ungidos pela História. O arauto decerto comporia uma banda sonora para tão épico momento. 10 000 anos de felicidade ao virar da esquina não é todos os dias, verdad?… Resta acrescentar que Mikis, um “camarada” dos sete costados, recebeu em 1982 o prémio Lenine da Paz. Capisci?

3. Pablo Aimar assinou recentemente por mais uma época no SLB. Nem podia ser de outra maneira. O Benfica precisa dele da mesma forma que o Mago, atendendo à idade e capacidade física, não consegue ter a visibilidade e a proeminência que tem na Luz em nenhum outro clube. Portanto, o casamento perfeito, sem pompa, mas com circunstância. E pronto, como o momento é de júbilo, tinha que vir a frase. Em 1984, Italo Calvino foi convidado para um ciclo de seis conferências na Universidade de Harvard. Os textos (com excepção do último, pois o autor faleceu antes de o criar) foram depois reunidos num volume intitulado “Lezioni Americane – Sei proposte per il prossimo milennio” (Palomar, 1990). A edição portuguesa, com o título “Seis Propostas para o Próximo Milénio” apareceu em 1993, sob a chancela da Ed. Teorema. Um desses exemplares, com capa cartonada de cor bordeaux, é uma das pièce de résistence da minha biblioteca. E quais são os temas das propostas? Pois bem: leveza, rapidez, exactidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. E qual é a frase? Aqui vai: são raros os que, no futebol, conseguem reunir, de uma assentada, os seis desígnios de Calvino. E quando esse alquimista joga no meu clube, então, cumpriu-se o sonho.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Leave a Reply