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Vemos, ouvimos e lemos

Tresler

1.A realidade é uma bela peça de ficção. Quem assegurava que o caso Sócrates era suficientemente criativo no campo das artimanhas e dos ardis, vê a cada semana ultrapassados os limites no confronto com a realidade. O caso de Guimarães lançou o público contra um polícia que perdeu (não sabemos bem porquê) a calma. Mas o mesmo público ainda há pouco tempo assistia impávido à invasão das escadas do Parlamento pelas mesmas forças policiais com as televisões a passar horas de espetáculo, com a invasão legitimada pela “indignação”. Aconteceu assim que uma bastonada e um ímpeto furioso a mais faz recuar a polícia mais degraus do que os fracos escudos da polícia de choque. E a imagem inversa de um polícia a proteger uma criança a chorar tornou-se o símbolo de algo que queremos na polícia mas que na realidade qualquer pessoa de boa vontade faria. Foi assim um ato para tanta condecoração? Só por contraste.

Guimarães revelou também o mundo real do futebol: hordas de fanáticos que com um copo a mais invadem as ruas e intimidam, partem tudo, agridem e saqueiam. As claques andam na rua de tal modo que deixam os donos de estabelecimentos de credo na boca a recear uma fricção que lhes possa estilhaçar as montras. E a novidade está agora na filmagem das cenas. Gente de aspeto remediado ou mesmo de classe média surpreendida a roubar equipamentos num estádio; bares e instalações sanitárias completamente desfeitas; gente que não é educada para saber esperar ou para sofrer um bocadinho. Para além de que a ocasião faz o ladrão, fica a ideia de que dentro de nós há um marginal à espreita. Curiosa também a justificação que as TV passaram de que “não houve polícia a vigiar aquele sector naqueles 90 minutos de espera”. Era preciso…!

2.A violência entre jovens deixou de ser “coisa de juventude” e passou a ser problema social. Passou também a ser “passatempo” de redes sociais e de TV. Que outro nome senão violência podemos dar a concursos ou reality-shows que desafiam jovens a ofender outros, a provocá-los, pondo o público de fora da jaula a apreciar e bater palmas? A cultura da humilhação está institucionalizada nos programas de “eliminar”, com um maço de notas a fazer salivar os concorrentes e audiências de milhões a pagar o show. Como é que então nos admiramos de ver cenas de violência na rua, na aula ou nos corredores da escola? Simplesmente porque ao lado da cultura de humilhação convive a cultura de pouca exigência em troca do muito que tentamos dar aos filhos. Recentemente ocupou as escolas ou ganhou protagonismo nelas um conjunto de jovens que acham que não têm limites, ofendem e saem quase impunes perante a incredulidade de poucos e a passividade de muitos, chutando para cima, como é de crer. Sanções dá muito trabalho aplicá-las, violência não é possível até porque os pais não a tolerariam, quando a toleram diariamente contra eles e a resposta é nada. Para os pais, os filhos são joias incompreendidas – no facebook tornam-se mesmo, vemo-lo todos os dias, em “príncipes” e “princesas”, “filhos lindos”, para além de modelos de passerelle. Em muitos casos a escola, anquilosada e com estruturas quase da Idade Média, é incapaz de dar o mínimo e exigir o respeito das regras mínimas: diálogo entre agentes educativos; estabelecimento de limites; educação para o sofrimento e respeito por aqueles que têm o direito de interpretar aquilo que é bom para o futuro dos jovens, creiam ou não eles nesses conteúdos ou aprendizagens. A culpa é do Crato, já se está a ver.

3.Uma história de Maria Isabel Barreno vem chamar-me a atenção para a nossa compreensão das lições morais das histórias que lemos e das vidas que nos cercam. Se cada vida encerra uma lição moral, a nossa formatação revela uma maneira diferente de ler as histórias e as vidas e a aceitação que temos dos comportamentos dos outros. Imaginem um mendigo-contador de histórias numa praça de uma cidade a contar aos passantes a seguinte história. Um ladrão de estrada que é sanguinário e cria o terror numa região, um dia, em fuga, cai do cavalo na montanha e parte uma perna. A custo lá se arrasta e sobrevive durante semanas a plantas e frutos silvestres com os ossos fora de sítio e irremediavelmente condenado a nunca mais assaltar. Já recuperado mas coxo para sempre, chega a uma aldeia onde as profecias diziam que chegaria um dia um barbudo de perna coxa e torta, o “pai dos arrependidos”. É recebido portanto como “o enviado”. O alfaiate da aldeia acolhe-o, mais tarde o ex-ladrão casa com a filha dele, tem filhos, faz uma vida normal. Na morte recomenda aos seus filhos que “aceitem o seu destino”. Quando o contador de histórias acabou, houve ouvintes revoltados com o facto de um ladrão ser “premiado” com uma vida feliz. Outros diziam que era fantástico como Deus lhe tinha dado outra oportunidade e ele a tinha aproveitado. Um rapaz revoltou-se contra o facto de o ladrão ter tido que “sofrer” para ser feliz. E perguntava ao narrador se achava que o sofrimento tornava as pessoas boas. Neste caso e em outros o sofrimento deu à personagem a consciência dos seus limites e redimiu-a. Seremos capazes de sofrer em nome de algo superior que não vemos? (Maria Isabel Barreno, “O Enviado”)

Por: Joaquim Igreja

Comentários dos nossos leitores
Maria Rosa mariarosaabreu@hotmail.com
Comentário:
Está espetacular a maneira como narras a realidade. Quando ouvi que iam condecorar o polícia que protegeu a criança também me perguntei, mas não é o serviço ou a obrigação deles protegerem-nos?
 

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