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Velhice

A morte é o nosso futuro. Se possível, também a velhice o é. Pascoaes diz: “A criança é a máscara do velho”, lançando com esse dizer uma noite sobre a vida. A velhice foi sempre um grande motivo de inquietação humana. E de meditação. Quando para aí viramos o olhar, vemos um país que não é pátria, um lugar sombrio onde somos ameaçados a partir de dentro, privados do nosso primeiro instinto – o do corpo. Tudo nos cerca. Por isso, resistimos a nos imaginar velhos, como se o pensamento da velhice nos acelerasse o passo com que lá chegamos. Quando se é muito novo, a velhice é a dos outros. Quando se está a meio do caminho, a velhice começa a ser nossa e tudo ousamos para nos desviarmos dela e dos seus perigos. Quando se é velho, o espelho foge-nos da mão e não quer reflectir o que vê. Alguns velhos são loucos e sagazes. Por isso, a velhice é também a fonte onde se alimenta alguma da mais risível comédia humana. Simone de Beauvoir, num sombrio livro sobre a Velhice, fala de um peso insuportável e afirma que ela é uma triste paródia da vida. Cícero, em Da Senectude, aconselha, para a viver, uma mistura de apego e de renúncia à vida. La Rochefoucault lembra que os velhos gostam de dar bons conselhos para esconder que já não estão em estado de dar maus exemplos. E Vergílio Ferreira falava da velhice como do lugar de um grande confronto do homem consigo – com a memória, a liberdade, a finitude.

No tempo em que os políticos falavam da vida e da morte, De Gaulle disse que a velhice é um naufrágio. Tenho amigos para quem a velhice tem sido o encontro com um novo Eu: mais lento, mas mais sábio; mais prudente, mas mais atento. Outros, porém, enrolam os pés nela como numa passadeira rota: tropeçam, caem, partem o rosto. Como noutras situações, noutros riscos, noutros desafios, há quem saiba e quem não saiba fazer-lhe frente. A minha mãe tem resistido à velhice e a tudo o que ela trás com uma vontade que tem vencido e uma imaginação que tem durado. Mas como nos humilhamos perante a doença, que demasiadas vezes é a irmã chegada da velhice e da pobreza e da solidão! Sem os vermos, estamos cercados de idosos de sorriso triste e mãos frias a acusarem-nos. A sociedade do êxito e da competição trocou a experiência pela velocidade, a sabedoria pela informação, a visão pela imagem – divinizou a juventude e expulsou a velhice para os lares que cheiram a urina e a morte.

A história da velhice é mais incerta do que parece. Já Chateaubriand dissera há dois séculos: “Outrora, a velhice era uma dignidade; hoje, é um peso.” Mas houve um mundo em que a velhice era a idade da atenção e da escuta. No nosso, é o tempo do esquecimento e do vazio. Agora, fazemos da longevidade a nossa mais apurada forma de crueldade. Quanto mais ela aumenta, maiores são a indiferença e o desprezo pelos que duram. Todos os dias sabemos histórias de crueldade e abandono que aterrorizam, mas que calamos. Como sempre, há todas as explicações para elas. Diz-se: “A culpa é da vida. As pessoas têm de trabalhar e não podem tomar conta dos velhos.” A culpa é da vida! E é de todos nós, que, diariamente, fazemos da vida o que ela é.

Por: José Manuel dos Santos

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