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Vamos às Compras?

Muitos criticam o consumismo, enquanto sintoma e prova da decadência da nossa civilização. Mas, ao mesmo tempo, quase todas as manifestações do Humano se traduzem hoje num acto de compra-e-venda, o que é redutor. Comprar e vender é bom; não poder comprar é mau. Jerónimo de Sousa e Belmiro de Azevedo e Francisco Louçã e Cavaco Silva querem o mesmo: que todos os portugueses possam ir aos hipermercados da Sonae, ou aos outros, e se atafulhem em compras1. O meu filho, com dez anos, pedia-me um cartão de crédito. A mais nova, com três, quando houve falar em “ir às compras”, exige ir também e quer depois tirar coisas da prateleira, algo aleatoriamente, e colocá-las depois no carrinho. Já em casa, exibe orgulhosamente as coisas que “comprou”. Os sindicatos, os partidos de esquerda, os de direita, os candidatos presidenciais, reclamam e prometem todos “poder de compra”.

Em Portugal, produz-se pouco. As empresas industriais fecham, ou mudam-se para o Leste, ou ameaçam ir. Mas continuam a abrir centros comerciais, onde se compram as coisas produzidas lá fora, no leste da Europa ou na China. Quando abriu o Serra Shoping, na Covilhã, entupiram-se dias a fio as estradas de acesso à cidade. A abertura do Fórum de Viseu já tinha causado igual comoção e correspondente inveja, por exemplo na Guarda. As pessoas, nós, eu, queremos comprar e muito, quanto mais perto de casa melhor. E só na Covilhã, dirão, criaram-se oitocentos postos de trabalho com o novo centro comercial. Muitas vantagens, muito dinheiro a circular, mais impostos, mais riqueza. Mais endividamento?

Sim. É que as nossas exportações cobrem pouco mais de setenta por cento daquilo que importamos, o que significa que temos um pesado défice comercial. Dizem que o motor da nossa economia é neste momento o consumo interno, mas este consumo está a ser mais rentável para os países de onde importamos do que para a produção nacional. E reparem: abrem todos os dias lugares onde podemos gastar dinheiro, mas raramente aqueles onde este se ganha. A coisa parece ir funcionando, mas muito graças ao crescente endividamento das famílias (este era em 2004 o triplo de há dez anos atrás) e do Estado. Ninguém, pelos vistos, vive à medida do que tem. Todos continuam a prometer, e a exigir, o impossível.

Um exemplo muito terra-a-terra, destinado a quem julga não perceber nada de economia: imagine o leitor que gasta mil euros por mês e que apenas ganha setecentos (que é o que está a fazer o país, na proporção desses números, neste momento). Que faz? Certamente o que fazem habitualmente os portugueses: pede mais um cartão de crédito, faz um reforço da hipoteca (e gasta depois o dinheiro em bens de consumo corrente), faz mais um crédito pessoal. Quanto tempo acha que vai poder continuar nessa vida? Já lhe passou pela cabeça a ideia de gastar menos?

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1 “Essas coisas proibidas/ em direcção às quais te arrastas/ e que serão tuas/ quando fechares/ os olhos da opressão” (Léo Férré, L´Oppression – em tradução muito livre)

Por: António Ferreira

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