Sigo sempre com muita atenção as reflexões sobre os media. Porque o destino dos media se cruza com o destino da própria democracia. De facto, não pode haver democracia sem liberdade de imprensa. Mas também é verdade que não há liberdade de imprensa sem democracia. Uma não vive sem a outra. Ora, a liberdade de imprensa é um bem público de natureza muito delicada, que, por isso, urge proteger. Até porque é sobre a própria democracia que mais fortemente incidem os efeitos dos desvios que aquela possa sofrer. Mas, como em tudo, também aqui a liberdade não pode subalternizar a exigência da responsabilidade, tanto mais quanto ela se exerce num plano público, geral, colectivo. Sem responsabilidade, a liberdade confunde-se com libertinismo. Que, tal como o democratismo, mais não é do que uma doença infantil da democracia. A liberdade e a democracia dependem, pois, do princípio da responsabilidade como seu princípio moderador. Tal como a liberdade é princípio moderador daquela igualdade que está na origem da própria ideia de democracia (Tocqueville).
Estas são esferas tão delicadas que, como diz Bobbio, podem avariar ao mínimo choque. Por isso, devem ser sempre tratadas com distância, serenidade, sensibilidade e fineza conceptual.
Fiquei, por isso, perplexo com a violência de um artigo de Eduardo Cintra Torres (no «Público» de 9 de Junho) sobre a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), instituição que resulta da iniciativa da Assembleia da República e que possui um estatuto de total autonomia relativamente a qualquer órgão de poder. O articulista critica a ERC por promover uma monitorização permanente da informação de natureza política presente nos canais televisivos, de acordo com regras explícitas e comunicadas a todas as instâncias envolvidas no processo político-informativo, televisões incluídas. Pretende a ERC imputar com rigor a informação política televisiva aos diversos sujeitos intervenientes no processo político, avaliando o grau de pluralismo desta informação, com regularidade e com permanente informação aos intervenientes acerca dos resultados obtidos.
É certo que este processo poderia não ser conduzido directamente pela ERC, mas sim por observatórios científicos universitários, intervindo a Entidade Reguladora somente no final do processo. Assim se pouparia certamente dinheiro, ao mesmo tempo que se promoveria e financiaria a investigação universitária neste campo. Mas este não é aqui o ponto central.
Importante é saber se o conhecimento rigoroso do panorama geral da informação política televisiva poderá ser útil aos agentes políticos activos do processo político, às instituições, ao cidadão e até mesmo aos próprios media. É óbvio que sim, só pecando a iniciativa por tardia. É óbvio que todos poderão agir melhor se conhecerem melhor as tendências gerais que dominam o panorama informativo em que se movem. Tendências que nem sempre são evidentes à vista desarmada. Foi, aliás, isso mesmo que pude constatar no Prefácio ao excelente livro de Nuno Goulart Brandão, Prime Time, do que falam as notícias dos telejornais, escrito pelo insuspeito Francisco Pinto Balsemão: quis «realçar quanto ele contribuiu para que eu próprio sobre elas meditasse ou remeditasse e, nalguns casos, revisse posições que dava como adquiridas e imutáveis». Nuno Brandão analisou as tendências informativas dos telejornais, procedendo a uma classificação exaustiva das matérias informativas. Ou seja, fazendo, na sua tese de doutoramento, uma investigação do tipo daquela que a ERC pretende agora fazer. Resultado: até o patrão da SIC mudou, positivamente, de opinião sobre a informação que ele próprio produzia. É, pois, incompreensível que Cintra Torres considere esta iniciativa como um abuso de competência, um atentado à liberdade de informação e puro servilismo político. Numa palavra, uma ameaça à democracia. O seu longo artigo pareceu-me, à primeira vista, uma natural reacção à invasão da sua esfera de crítico de televisão por uma instituição do Estado. Reacção perante esta ameaça ao oligopólio dos gatekeepers da crítica televisiva. Depois, reflectindo melhor, e afastando a hipótese de ser uma reacção perante possíveis interesses feridos, constatei uma forte coincidência deste articulista com posições que vêm sendo sistematicamente defendidas, por exemplo, pelos Directores do «Expresso» e do «Público». Ou seja: tudo o que cheire a Estado e a política convencional cheira a sufoco da liberdade e, portanto, a sufoco da democracia. Livre, livre, em boa verdade, só a política concebida por eles. Ora aqui está. Julgo que é disto que se trata.
Por: João de Almeida Santos