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Uma avó portuguesa

Corta!

Entrar no universo de Belleville é uma autêntica viagem no tempo, em especial para quem esteja agora na casa dos 30, ou neles esteja prestes a entrar. Quem não recorda aquelas tardes de sol tórrido, sem fim à vista, durante férias que duravam quase um quarto de ano e quando apenas existia um canal de televisão, em que se ficava estupidamente a olhar para o televisor, a ver, sem sabermos porquê, centenas de bicicletas a percorrer as paisagens francesas? (Alguém apreciava realmente aquilo?!) Mas nem só no ciclismo é aqui feito um apelo à nossa memória. O cinema de Tati, que faz parte da cultura cinéfila de tantos que nem desconfiam sequer que tal realizador alguma vez existiu, também está presente e faz questão de se fazer notar. Mas, se é de desenhos animados que se fala aqui, os desenhos propriamente ditos são também um regresso a um passado que temíamos já não existir. Um passado que vai sobrevivendo na sombra das grandes produções computadorizadas. Sem tentativas de esconder que são bonecos o que vemos, nesta co-produção francesa-belga-canadiana, a beleza não segue modas. Se Nemo fosse parar a Belleville o mais certo era morrer logo de susto.

A primeira longa de animação de Sylvan Chomet, «Les Triplettes de Belleville» (é disso que se fala aqui), para quem não esteja a ver muito bem que coisa é essa, passará a não ter qualquer dificuldade na sua identificação se lhe disser que é aquele estranho (pelo menos para alguns) filme de animação que estava descaradamente nomeado para os óscares entre dois gigantes americanos (ou pelo menos um gigante e um jogador de basquete) «Kenai e Koda» e «Finding Nemo».

Com uma simpática imigrante portuguesa, Madame Souza, avó que só pensa e vê o neto, como personagem principal, em «Les Triplettes de Belleville» acompanhamos a sua viagem até ao outro lado do Atlântico, quando o seu neto, Champion de seu nome, é raptado pela máfia americana, que rapta ciclistas na Volta a França e os leva para a América. Se o universo francês aqui criado deve mais a Tati, já a América de Belleville (ou antes, Belleville aqui é a própria América) é de desarmante e total delírio. A primeira imagem que vemos da América, e o cinema sempre nos ensinou isso, é, como não poderia deixar de ser, a da Estátua da Liberdade, aqui revista e «aumentada». Desde a «América» de Kafka que tal monumento não era tão brilhantemente desvirtuado. Mas, e as entrevistas dadas pelo realizador já o faziam prever, todas as oportunidades são boas para enviar umas farpas ao país mais detestado e amado do mundo. Um país que, aqui, está repleto de pessoas obesas e sem nada a dizer, voluntariosas mesmo quando isso lhes não é pedido.

Por entre tanta personagem inesquecível (e que dizer do cão que quase se não aguenta nas pernas e que desde muito cedo aprendeu a não gostar de comboios, pelo que, na hora certa, sobe sempre os mesmos degraus para proceder ao seu ritual), há também, lá pelo meio, um homem que alugou um barco por 20 minutos, mas que terá muito que esperar até que o barco lhe seja devolvido, e aqui fica um conselho: já agora espere você também quando o genérico final começar, pois há uma surpresa guardada para os menos impacientes e que têm sempre imensa coisa para fazer quando acaba um filme.

Nas margens das ruas de Nova Iorque, ou melhor, Belleville, onde abundam as placas a informar «in vino veritas», Madame Souza inicia uma carreira artística na companhia das Triplettes, três estranhas irmãs, com uma não menos estranha dieta. O objectivo é salvar o macambúzio neto. Com pouco ou nenhum recurso a diálogos (inclusive a edição em Portugal nem sequer legendas tem) este é um regresso ao cinema universal, entendido por todos, feito para todos. E que todos deveriam ver.

Por: Hugo Sousa

cinecorta@hotmail.com

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