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Um texto que começa uma novela

Bilhete Postal

Um dia amaram-me com os olhos durante dias. Olhavam-me fixos nos gestos e eu aumentava o número de atos enquanto me afagava daquelas observações. Ser visto de modo terno. Podia haver pecado, mas não existiu. Podia transportar desejo mas não se materializou. A experiência do olhar é uma incontornável face do viver. Também eu observo atentamente, outras vezes discreto. Mas olho e registo sensações na memória. Já desejei ao ver. Já me regalei de olhar. Já me entusiasmei enquanto alguém se expunha para mim. Entendo a infinita tristeza, o máximo desespero de quem lentamente se apercebe da perda da visão. A cegueira chegada depois da experiência do regalo dos olhos. Claro que sei que a insistência, o descaramento, a observação prolongada, o tarado atrás da árvore, o pervertido no jardim, o porco no autocarro são dores na magia da luz.

Vejo-a que saí de casa e também deslumbro o que expõe. Hoje, com a internet e as redes sociais posso ver mais. Há quem se coloque de forma inebriante, há quem se entregue a fantasias, há quem provoque, há quem se exponha na praia, na banheira, em fantasias e poses. Se soubessem das perversões perceberiam que ousando se dão. Como não há contornos físicos, não percebem que outros as podem guardar, imprimir, colocar no armário do quarto. Os tarados podem ter menos trabalho. Para quê arriscar num lugar público se te entregas a mim neste ecrã? Vejo-a que sai e observo. Vivo num prédio alto e sei quando sai de casa, sei quando volta. Há uma pessoa que caminha de modo convicto. Podia imaginar a pessoa pelas roupas, pelo pisar, pelo lugar de onde vem e com quem se encontra.

Arrisco. Pés direitos, pisada firme, veloz. Sempre rápida. Deve ser determinada ou vai sempre fora de horas. Muitas roupas diferentes, sempre outro detalhe, um lenço, um saco, um vestido, justo ao corpo perfeito. Deduzo que se cuida, pressuponho alguma vaidade, a noção de que se é vista. O fulgor das formas tem de ser preservado, cuidado, ou desvanece-se nas noites, no álcool, no fumo. Nas redes sociais tem sobretudo amigas bonitas. Tem a Carla, tem a Ana. Não há rapazes demasiado próximos. Nunca a vão buscar a casa. Vive com os pais? Tem uma relação difícil com eles? Vejo-a mas não posso tirar conclusões de muitas outras coisas. Uma má experiência antes? Ficou uma dor? O bairro é social. Vergonha da origem? Sei pelos passos que não. Sei pela descrição que não gosta de muitos afetos. Observo apenas, como se visitasse uma cidade nas folhas de uma revista. Um dia talvez lhe acene. A imaginação não carece do corpo.

Imaginar podia levar-me a muitas histórias. Imaginar que a contratava para empregada. Eu vivendo só, chamava uma mulher linda e assim, porque havia um contrato tinha na proximidade quem antes via de longe. Fantasia erótica com uma mulher atraente, com duas amigas e pensar que elas me adotavam todas para me enlouquecerem e extorquirem dinheiro. Podia ser o sonho de um romance como o dos filmes. Ele mais velho, ela mais nova e linda, apaixonados. Imaginar é sem fronteiras, é algo que parte de todas as variáveis de uma história e se contorce em múltiplos cenários: bons, maus, sujos, violentos, emocionais. Há todas as hipóteses quando se inicia um texto que envolve personagens. Como nasce uma história? Nasce de um reparo, de um detalhe da vida, de uma coincidência. A realidade é outra. A realidade tem famílias, tem filhos, tem idades, tem distâncias físicas e mentais e morais. Há fronteiras que congelam os cenários das histórias. Mas um romance, uma novela, é isso mesmo. É construir textos a propósito de factos todos imaginários ou alguns reais e desenvolvimentos fantásticos. Como contar a vida com cartoons.

Por: Diogo Cabrita

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