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Um presépio bem vivo

observatório de ornitorrincos

O Natal é para as crianças. Todos os anos se repete esta expressão, que de tanto ser repetida já devia ser verdade. Deve por isso que os adultos se incomodam tanto com a iluminação da casa, com a marca do vinho, com o bacalhau mais fresco ou com o telemóvel da última geração. Se o Natal fosse realmente para as crianças, o jantar de Consoada seria bifes (ou hambúrgueres) com batatas fritas e litro e meio de Fanta laranja. E a tradição de distribuir as prendas à meia-noite é uma inefável maldade. Se o Natal fosse para as crianças as prendas eram entregues aí por volta das quatro da tarde. Do dia 21.

Não se julgue que repreendo o comportamento dos adultos. Se o Natal servir para civilizar os petizes, ensinando-os, por exemplo, que devem esperar para ter o que querem, que há regras e procedimentos que devem ser cumpridos e que não devem fugir aos pais, senão acontece-lhes como ao Macaulay Culkin no Sozinho em Casa, o Natal já tem uma utilidade quase tão grande como as campanhas de desconto na compra de ecrãs plasma.

Na realidade, a melhor prenda das Festas natalícias para a miudagem chega cerca de uma semana antes: as férias escolares. Talvez esta seja a verdadeira razão para se dizer que o Natal é “para as crianças”. É para as crianças ficarem em casa, enquanto os pais agonizam no trabalho sem saber se têm os filhos na sala a jogar PlayStation ou estão no quarto com rapazes e/ou raparigas da mesma idade a recriar ao vivo cenas do Mortal Kombat ou do Império dos Sentidos. Em qualquer destes casos, há um pensamento atormenta os educadores: “Onde é que eles vão arranjar japoneses?”

Antes destes agonizantes (para os pais) quinze dias de férias, há uma realização agonizante (para os filhos). A festa de Natal da escola. Se os professores e encarregados de educação concretizassem os seus planos iniciais, os saraus natalícios dos liceus portugueses seriam produções comparáveis aos musicais de Andrew Lloyd Webber. Sensatamente, as crianças e os adolescentes desinteressam-se pela recriação naturalista da Jerusalém ocupada por tropas romanas e as festas acabam por ser apenas um pequeno recital de poesia e música ligeira, muito apreciado por gente que considera os concertos de André Sardet “uma experiência electrizante e perturbadora”.

Os momentos de tensão da quadra não terminam sem mais uma exibição pública dos dotes da miudagem dentro de uma casinhota coberta de palha, a representar as figuras presentes no momento da Natividade de Cristo. Chamam-se presépios vivos, mas tendo em consideração que lá dentro estão crianças, mais parece um museu de cera morto. Se o Natal fosse para as crianças, o presépio vivo seria composto de rapazes e raparigas vestidos de Homem-Aranha e Floribella (respectivamente, em princípio) e em vez de estarem vestidos com serapilheiras, ali parados e quietos a fingir que veneram o bebé careca deitado na palha que pretende ser Jesus acabado de nascer. Além disso, estariam empolgadamente a jogar ao eixo, a enfiar palhinhas nas calças do “palerma que se está a fazer à minha amiga”, a reconhecer as parecenças entre a vaca de cartão e a estúpida “que se está a meter com o meu amigo” e, no fim, desatariam todos à batatada uns aos outros, antes de se abraçarem e reconhecerem que se amam todos muito e não conseguem viver cinco minutos uns sem os outros. Um presépio vivo para as crianças seria assim.

O Natal é uma época de paz e concordância, de esquecer conflitos e desavenças. É para as crianças e para os adultos e para os velhos. Isso está tudo muito certo e é bastante bonito, para não dizer que é lindo. Só não me conformo com ir jantar a casa da minha mãe e ter de comer bacalhau em vez de bife com batatas fritas.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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