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Um menino tramado

Bilhete Postal

Fui ao Estoril apresentar uns trabalhos sobre úlceras de perna no Congresso Nacional de Cirurgia. Encontrei um hotel decadente na figura do SANA Estoril e uma urbe diferente após 20 anos da minha ausência. Mas nada disto interessaria aos leitores se não fosse o meu carro rebocado pela Polícia Municipal de Cascais. Fiquei a saber que, em Cascais, há três rebocadores à espreita: o da PSP do Estoril, o da PSP de Cascais e agora estes – os Municipais. O risco de reboque é pois elevado há terceira potência. Assim não fui retirado de um sinal de trânsito incómodo, não estacionai sobre um passeio, não deixei de pagar os selos de estacionamento, não bloqueei a estrada. Nada disso, agora a coisa é mais sofisticada e é subjectiva e dependente da interpretação da autoridade. Alguém achou que eu “podia estar a bloquear o caminho”. Uma novidade interpretativa da Lei. Este assunto vai para contestação. Mas o que me leva a escrever é a história da descontinuidade do Alfonso, menino brasileiro que tinha o carro ao lado do meu. Carrinho velho para ir trabalhar. Carrinho com seguro caducado há três dias, carrinho sem inspecção feita. Alfonso, de 19 ou 20 anos, lembrou-me o meu Tiago sozinho em S. Paulo. Emocionado, mas sem lágrimas, procurava explicar que estava a trabalhar para mudar a sua vida, perguntava aterrado se ficava com registo criminal sujo, que não tinha dinheiro ali e agora. A intolerância para o menino foi aquela que a lei dos Trebuchet PS obriga: 250 euros da inspecção, 300 euros do seguro, 50 do estacionamento, 30 do reboque e sei lá mais o quê. O menino – porque era mesmo um menino – nunca vai ter os 630 euros de ordenado, quanto mais naquele dia.

Assim surge uma descontinuidade e um menino com uma arma na mão. A vida do Alfonso, que podia morrer soldado, que podia ter sido vítima da Casa Pia, que podia ter sido roubado de um rim, mudou na imprevidência de uma semana brutal. Testemunhei convicto que a Lei é para nos proteger e que estava a nascer a razão de um desespero e fiquei atordoado sem saber que pensar. Levei o meu carro e escrevo hoje para libertar esta ideia que me angustia.

Por: Diogo Cabrita

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