De vez em quando, há génios que falam. António Lobo Antunes não é um desses génios. Raramente dá entrevistas, gosta pouco do convívio com jornalistas e vá-se lá saber por que razão decidiu, um dia, dar uma série de longas entrevistas ao mesmo jornalista, que acabaram publicadas em livro. Mas na semana passada, o génio falou. Há pouco mais de um mês, tinha ido ouvir a Maria de Medeiros, recém-chegada de Paris, dizer as vozes de “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar” no São Luiz. E compreendi que as minhas vozes não eram aquelas: eram as vozes daquela mulher, em particular. Talvez seja essa experiência quase metafísica que distingue um génio de um escritor vulgar. E um leitor só será verdadeiramente leitor quando as vozes de um escritor fora do normal se fundirem com as suas próprias vozes. Numa grande obra, o escritor deixa de existir e o leitor, de certa forma, também. Juntos, escritor e leitor, transformam-se em vozes, palavras, pensamentos e memória.
Na semana passada, Lobo Antunes foi à televisão e em horário nobre. É evidente que a jornalista não compreendeu com profundidade metade dos pensamentos do escritor. E é evidente que é dificílimo entrevistar um homem fora do normal sem poder fugir à rigidez quase cadavérica do estilo entrevista pergunta-resposta em televisão. Além disso, existem perguntas, dentro ou fora de uma entrevista, para as quais não existem respostas certeiras – às tantas é um disparate existirem entrevistas. “Em relação aos livros é curioso. Eu não escrevo de forma deliberada. Não faço planos. A mão anda sozinha. Quem é que a faz andar? Não sei.”
Talvez Lobo Antunes, sorriso infantil, olhos-brilho envergonhados, se interrogue mesmo à séria, de um interrogar verdadeiro e angustiante, quase mortal, sobre quem são as vozes que lhe falam e quem é a mão invisível que lhe faz mover a caneta. Porque Deus, esclarece, não é. Pelo menos nem sempre. “A minha relação com Deus é conflituosa. Sempre foi. Consola-me pensar que de vez em quando Ele constrói pessoas à sua medida. É que um homem fora do normal demora muito tempo a fabricar.” De Deus também só conheço a turbulenta relação com a fé, longas passagens por noites do espírito, mas estou convencida de que existe qualquer coisa metafísica e que só pode pertencer ao domínio de Deus quando aquele homem fora do normal sorri. Quando fala, por exemplo, do ofício da escrita: “A única coisa que me interessou desde que me conheço é a escrita. (…) Sempre tive a sensação de ser um trapeiro. Trabalho com aquilo que as pessoas deitam fora. Apanho-as, transformo-as e depois faço daquilo um livro. Um livro continua a ser para mim um mistério muito grande. São coisas que julga que já se esqueceu e que de repente voltam com uma força enorme. Um olhar na rua. Uma determinada luz, uma determinada cor. Às vezes palavras. Lembro-me de um livro [o “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar”] que foi feito só com uma frase, começou só com uma frase: “Como esta casa deve ser triste às três horas da tarde” [e vêm-me outra vez à lembrança as vozes da Maria de Medeiros, que não são as minhas vozes e tão pouco serão as do escritor, a repetirem a frase: “Como esta casa deve ser triste às três da tarde”]. Tudo o que eu tinha era esta frase. É como apanhar um botão na rua e fazer um fato para o botão.”
Vistas as coisas assim, escrever não deve ser diferente de apanhar uma gripe. Sai-se à rua, há um descuido qualquer e apanha-se o raio da gripe. Talvez Lobo Antunes esteja em permanente convalescença do mundo. Longe dos outros, que é onde acontecem as coisas mais importantes. “Nós nascemos e morremos sozinhos. A morte é uma coisa muito individual. O nascimento também. A solidão mantém-se desde o momento em que nascemos. No mais fundo de nós estamos sempre sozinhos. E é onde temos de tomar as decisões. Às vezes perguntamos: ‘o que é que tu farias no meu lugar’? É uma pergunta completamente impossível. Nas grandes decisões estamos sempre sós.”
E depois ainda há as decisões que nunca se chegam a tomar, porque não se vai a tempo – por muito que se corra. “Ninguém está preparado para morrer, mas muito pouca gente está preparada para viver.” Às páginas tantas, morrer não tem nada de especial. “A maçada da morte é que se fica morto muito tempo. Olhe há quantos anos o Afonso Henriques está morto.” Morrer não tem nada de especial para os que conseguem perpetuar-se através de uma obra ou da memória de alguém. Talvez nunca ninguém morra sozinho, afinal. Se a morte é o fim de tudo, a morte de alguém só se faz morte perante a perceção de morte de outro alguém.
No fim de tudo, agora a crónica a morrer, talvez devesse ter escrito o texto político que estava planeado. Mas sobre o Estado da nação haverá pouco a dizer. Sobra uma pergunta – daquelas para as quais é difícil achar uma resposta certeira: “Quem foram os malandros que fizeram isto ao meu país?”
Por: Rosa Ramos