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Turistas e viajantes

Tresler

1. As viagens servem para nos situarmos melhor num mundo que é demasiado pequeno para não o conhecermos. Ao nomearmos os lugares queremos conhecê-los. Uns ambicionam ir ao fundo da casa, outros ao quintal, outros ao fim do mundo. Admiro os que são capazes de fazer férias meses seguidos sem vir a casa, numa volúpia de viajar pelo mundo sem cordão umbilical. Eu não seria capaz, embora me considere um amador de viajante. Também não seria capaz do contrário, de ficar no meu cantinho. Sandra Barão Nobre, dinamizadora de um blogue que faz fotografias de leitores em locais públicos, escreve em “Uma volta ao Mundo com leitores” sobre uma viagem de meio ano em que se lança ao desafio de conquistar o mundo para vencer uma doença (ou premiar a sua vitória sobre ela). E para preencher um vazio de realização profissional que ameaça derrotá-la. Viaja e fotografa leitores. Escolhe um rumo, faz um itinerário ligando sítios onde os portugueses estiveram e espera as surpresas. O preço dos aviões será compensado pelo preço muito baixo da alimentação na maior parte dos países. Começou pelo Brasil e avançou para a Austrália, Extremo Oriente, Índia, África.

Ser viajante é primeiramente um gesto: nem todas as pessoas se prestam ao ato de viajar. Na viagem a pessoa disponibiliza-se para o deslumbramento diante dos locais que visita. É difícil chamar viajante ao turista de praia que repete há 30 anos a mesma praia nunca saindo dos 1.000 metros que a rodeiam. Ser viajante implica aderir à vontade de conhecer e por outro lado estar aberto à surpresa ou à diferença (para além de confiante na sorte e na ausência de perigo). Depois necessita-se uma certa abertura aos habitantes dos locais nem que seja numa abordagem mínima. Se circunscrito a um pequeno território, o viajante encontrará motivos e desafios para explorar e “aprofundar” esse território. Caso a viagem possa ser longa e a disposição de abertura total, a variedade provocará um efeito de estranheza contínuo.

Sandra Barão Nobre viajou até ao cabo do mundo, escolhendo rotas dos guias turísticos, mas acabou por se confrontar com coisas que vão além da sua condição de turista: o nepotismo dos regimes, a miséria das populações ao lado do glamour das instalações hoteleiras, a capacidade de sorrir dos povos do Extremo Oriente, a violência ou a desorganização, o império do lixo, da imundície e dos maus cheiros. Dir-se-á que isso estragou 50% da viagem. Mas os restantes 50% já valeram a pena. Curioso que, numa viagem para fotografar leitores para o blogue “Acordo Fotográfico”, a autora tenha sobrevivido meio ano sem ler um livro sequer.

2. A realidade dos monges budistas impressiona qualquer um nestas viagens pelo Oriente. Impressiona pela qualidade e pela quantidade. Pela bonomia dos monges e pela sua disponibilidade, pela tranquilidade e espiritualidade evidenciadas, pelos milhares de monges e monjas que se encontram ou pelas zonas monumentais pejadas de dezenas de mosteiros. Os monges vivem sem nada ou renunciando à sua fortuna, vivem do pouco de que o mosteiro dispõe ou do que vão pedir pelas ruas e casas em cada dia. Mas a dimensão religiosa e o atingir de um outro nível estão lá dentro da alma destes povos.

Diga-se entretanto que a planificação destas viagens obriga a esconder o óbvio: que estas sociedades vivem e têm conflitos, que esta vivência monástica corresponde a uma organização social assumida e que corre risco perante a abertura ao mundo. E que a convivência com outras religiões nem sempre é fácil. Em terras de Myanmar, país onde toda a gente sorri nos álbuns turísticos, reprime-se através das iniciativas de um monge budista uma minoria muçulmana de 5% que vive sempre com o credo na boca. E como classificar na nossa mentalidade ocidental a transformação em monges desde a infância de vagas e vagas de crianças assim aculturadas em escolas monásticas? Os conventos já foram em Portugal e outros países europeus instrumentos de organização social cujas repercussões desde pequenos vemos refletidas em romances e novelas. Os conventos, na sua origem lugares de vocação religiosa, “serviram” ao longo de séculos para guardar, mesmo nas famílias nobres, os deserdados e as deserdadas, no caso feminino, aquelas que não tinham a sorte de ter um pretendente à altura para o qual era guardado o dote da primogénita. Os dotes de entrada no convento eram bem mais humildes e os filhos eram literalmente para aí “despejados”. Todos temos presente a crítica de Gil Vicente ao número de frades no séc. XVI ou o panorama dos conventos no “Amor de Perdição”. O Oriente não é a mesma coisa mas, tendo em conta a variedade de regimes políticos, o turista para voltar de cabeça tranquila e “feliz” precisa de esquecer muita coisa que vê e não se inquietar muito com o que não vê. Ou seja, suspender a condição de cidadão durante algum tempo e adotar uma estratégia mais de observador. Senão deixa de ser turista.

(Sandra Barão Nobre, “Uma volta ao Mundo com leitores” e acordofotografico.com; Armando Cardoso, “Myanmar – o milagre de viver sorrindo”)

Por: Joaquim Igreja

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