A tradição cumpre-se religiosamente a 8 de maio, às 8h30, na Arrifana, a poucos quilómetros da Guarda. Não há memória de quando começou e também ninguém se recorda de alguma vez ter falhado a dádiva do trigo – ou pão de quartos – aos fiéis de uma missa mandada rezar por uma mulher com o valor da renda de um lameiro doado à paróquia. O nome da benemérita é uma incógnita, tal como a idade deste ritual que 20 pessoas cumpriram na semana passada.
A missa do trigo perdurou no tempo graças ao empenho dos habitantes da Arrifana e há dois anos que é assumida pela Junta de Freguesia. «Esteve quase a perder-se no início da década de 90, mas achei a iniciativa desta senhora tão interessante que passei a comprar o trigo para dar continuidade à tradição porque dessa vez só havia dinheiro para a missa», revela Ascensão Alpendre. «Trata-se de homenagear essa mulher que teve um gesto tão interessante e importante para a nossa comunidade. Antigamente, a igreja enchia-se e era uma alegria porque um trigo naquela altura era um luxo e esse dia era um dia de festa», acrescenta a moradora, que curiosamente faz anos a 8 de maio. Lurdes Martins recorda que nesses tempos vinha gente do João Bragal, João Bravo, Rasa, Casas da Ribeira, Sangradouro, as anexas da Arrifana, e até da Póvoa do Mileu, na Guarda. «Havia fome e um triguinho era um mimo», lembra, dizendo que os fiéis iam em ladainha até à capela da Sra. da Guia, no topo da localidade, onde era celebrada a missa. «No regresso, o padeiro estava no centro da aldeia para um trigo por cada família», conta.
É esta senhora que explica a que se deve esta tradição. «O lameiro deixado pela senhora era arrematado todos os anos a quem dava mais e a renda contribuía para a compra do trigo e pagar a missa. Mas hoje o lameiro já não é arrendado», adianta, considerando que esta tradição «muito antiga» – há quem diga já se praticar no século XIX – deve ser mantida porque «está tudo a mudar e acho bem que fique alguma coisa do passado para se recordar». Lurdes Martins garante que a missa do trigo tem «muito significado para a Arrifana porque aquela senhora ajudava as famílias». Quem também não perde este ritual desde pequena é Dulce Valente. «Nesse tempo vinha muita gente, não tem nada a ver com as pessoas que estão hoje [na passada quinta-feira eram 20]. Toda a gente da zona ansiava por esse dia por causa do trigo, que dava um jeitão porque só comíamos centeio, às vezes todo queimado e outras mal cozido», recorda, lamentando que, atualmente, só «as pessoas da nossa idade fazem muita questão em participar».
Susana Pires foge a essa regra. A jovem presidente de Junta, eleitas nas últimas autárquicas, garante que a tradição é para manter. «Não há registo de nada, o que é certo é que todos os anos no dia 8 de maio é celebrada esta missa pela alma da benemérita e distribuído o pão pela população. Mas não é uma obrigação, é um gosto», declara a autarca, reconhecendo que se não houvesse missa do trigo «as pessoas ficariam tristes, seria como se não houvesse missa noutro dia festivo porque esta é a nossa missa». Este ano a Junta comprou 40 trigos, as sobras, pouco menos de metade, foram entregues ao centro de dia da aldeia. Contudo, a missa do trigo pode ter os dias contados, pois não há jovens nesta celebração. «É complicado porque a missa é às oito da manhã em dia de aulas e quando muitos trabalham. Mas, com alguma dedicação e cuidado vamos manter a tradição, tenhamos o nosso pároco para cá vir por muitos e longos anos celebrar a eucaristia às 8 da manhã num dia da semana», assegura Susana Pires. Lurdes Martins confirma que está «muito difícil» fazer com que os jovens façam parte desta festa e receia que, daqui por uns anos, «quando os velhos deixarem de poder vir, a tradição se perca porque a juventude não liga a estas coisas». Mais otimista, Ascensão Alpendre ainda tem fé que as coisas mudem, basta que os mais velhos transmitam «o gosto e o amor por estas tradições que também falam um pouco da nossa gente. Os nossos antepassados não nos deixaram só as casas e os terrenos, isto é uma tradição que devemos manter e acarinhar», considera.
O “Magusto da Velha”
Em Aldeia Viçosa, outra aldeia do concelho da Guarda, dão-se castanhas e vinho aos habitantes por ocasião do “Magusto da Velha”, que se realiza anualmente a 26 de dezembro.
Esta tradição conta mais de 300 anos e tem origem numa herança deixada aos habitantes da aldeia por uma mulher abastada que ficou conhecida por “velha”. Esta herança é mencionada no “Livro de Usos e Costumes da Igreja do Lugar de Porco – Ano de 1698”, mas nada é dito sobre o nome da benemérita.
Luis Martins
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