Arquivo

Tortura em época natalícia

Atmosfera Portátil

No dia 10 de Dezembro comemoraram-se 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quando pensamos que os pressupostos desta importante declaração são defendidos por todas as nações evoluídas e civilizadas, damo-nos conta que não é bem assim. Muito pelo contrário. Recentemente, o vice-presidente americano, Dick Cheney, admitiu numa entrevista, que aprovou a prática de interrogatórios com tortura, com destaque para o controverso método do afogamento simulado. O uso destes processos tem sido um dos argumentos dos críticos dos EUA, em conjunto com os abusos nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo. O que Dick Cheney não assumiu mas que se sabe ser verdade, é que, para além do método do afogamento simulado, os militares americanos (com a CIA) implementaram fortemente outro método de tortura não menos controverso: a tortura musical.

O que têm em comum a música de Eminem, Bruce Springsteen, Meat Loaf, Rage Against the Machine, Metallica, Christina Aguilera e Britney Spears? Resposta: todas as músicas destes artistas já foram usadas para torturar pessoas. Já se falava disto há muito tempo (nem sequer é uma prática recente), pelo menos desde que existe a prisão cubana de Guantánamo: uma das técnicas de tortura dos prisioneiros é através da música, ouvida compulsivamente e em circunstâncias opressivas. Sabendo que a prática da privação do sono através da audição compulsiva da música ocidental é uma violentação das crenças culturais muçulmanas, os militares americanos forçam os prisioneiros a ouvir, durante mais de 24 horas seguidas (ou mais), num alto volume de som, músicas que vão do black metal a… Britney Spears, passando por artistas de hip-hop e, pasme-se, canções da série infantil “Rua Sésamo”. São estes os relatos de ex-prisioneiros e denúncias de jornalistas que investigaram o caso. Bandas como Metallica e Rage Against the Machine já se insurgiram contra o uso das suas músicas para efeitos de tortura.

De facto, uma música aparentemente inofensiva como a pop de Britney Spears ou uma canção de Bruce Springsteen pode, efectivamente, torturar psicológica e emocionalmente, um prisioneiro muçulmano. Primeiro, por questões culturais (um muçulmano a ouvir insistentemente a canção “Born in the USA” de Springsteen deve causar efeitos mentais desestabilizadores); depois porque, ouvir em alto volume estas músicas, ininterruptamente durante vários dias, pode levar qualquer resistente à loucura e à total alienação mental (como acontece no filme “A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick que, ao que parece, é uma fonte de inspiração para os carrascos norte-americanos). A estratégia de tortura musical não é feita de forma empírica e aleatória. Obedece a preceitos científicos rigorosos. É, seguramente, supervisionada e coordenada por especialistas militares do ramo da acústica e da psicologia humana, porque são estes que conhecem os limites da resistência humana à tortura musical e sonora.

A verdade é que, quanto a mim, os militares não primam propriamente pelo bom gosto musical (se calhar é de propósito) e denotam, até, alguma ignorância no campo da história da música. Qualquer pessoa que tenha estudado acústica e história da música sabe que bastariam algumas horas ininterruptas a ouvir música de determinados músicos experimentais para conseguir os efeitos pretendidos (geralmente, confissões nos interrogatórios). A música noise e industrial, que incorpora o ruído puro e altas frequências sonoras na sua estrutura musical, seria o suficiente para infligir danos psicológicos e físicos irreversíveis nos prisioneiros. Mas os responsáveis pelas torturas querem mais do que perpetrar a violência sonora imediata, querem humilhar os prisioneiros impondo-lhes os supostos valores musicais ocidentais que tantos odeiam. É vil esta forma de tortura (como o são todas, na verdade), uma vez que se recorre a uma expressão artística e cultural que deveria ser apaziguadora e universalmente aceite – a música – para servir de instrumento atroz de sofrimento em seres humanos.

Seis décadas depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos e numa quadra natalícia que se quer de fé, esperança e amor, este é um bom motivo de reflexão.

Por: Victor Afonso

Sobre o autor

Leave a Reply