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Testa-de-Ferro

Quando José Sócrates era funcionário da Câmara Municipal da Covilhã estava inibido por lei de subscrever os projectos das obras que tivessem de aí ser executadas. A proibição tinha toda a lógica: era no mínimo feio que Sócrates, engenheiro técnico, pudesse ver os seus projectos avaliados por Sócrates, funcionário da Câmara Municipal. Para além do mais, essa sua última qualidade iria proporcionar-lhe uma vantagem competitiva considerável, e injusta, em relação aos engenheiros civis da Covilhã que não fossem simultaneamente técnicos da autarquia. O que diria um destes se visse um projecto seu ser chumbado por Sócrates, técnico da câmara, ou ser guardado na gaveta durante meses, se os projectos deste último tivessem aprovação rápida após parecer favorável do próprio? Como é evidente, o mercado rapidamente favoreceria a prática privada de José Sócrates à custa do gabinete do nosso pobre engenheiro, simples e desamparado profissional liberal. Imagine o leitor o que seria se os juízes de direito pudessem exercer a advocacia, ainda por cima nas suas próprias comarcas, e dar sentença nas acções por si propostas. Seria escandaloso, não?

É claro que numa câmara municipal o técnico não tem a palavra final na aprovação dos projectos, não é ele quem dá a sentença. Limita-se a dar o seu parecer técnico aos políticos e estes, nas reuniões de vereadores, decidem. Acontece que os vereadores não são, a maior parte das vezes, versados em engenharia civil ou arquitectura e, não o sendo, não têm de meter o bedelho em questões técnicas. Fazem assim, na Covilhã, na Guarda e no resto do país, o costume: na dúvida subscrevem a opinião dos técnicos e esta opinião acaba por isso, quase sempre, por ter o valor de uma sentença.

Sendo assim as coisas, há um pequeno problema. As carreiras técnicas da função pública são mal remuneradas. Um engenheiro do departamento de obras de uma câmara municipal ganha muito menos do que poderia ganhar se tivesse prática privada. E ganha muitíssimo menos do que poderia ganhar na hipótese de poder acumular as duas actividades, ainda por cima no mesmo concelho. Neste caso, seria autenticamente perseguido por empreiteiros e particulares. Ganharia quanto quisesse, tivesse ele tempo para aviar todas as encomendas.

Uma forma de tornear a proibição aos técnicos camarários de exercer prática privada no concelho em que são funcionários é encontrar um testa-de-ferro, alguém que se disponha a dar a cara por um projecto que não é dele. Imaginemos um empreiteiro de uma parvónia qualquer que pretende construir um prédio com mais dois andares do que permitido pelas cérceas dos prédios envolventes. Isto daria ao nosso empreiteiro um lucro muito maior, ao permitir-lhe um melhor aproveitamento do solo. Apenas um tratamento de excepção lhe iria permitir a obra e um cenário possível passa por obter os favores do gabinete técnico da câmara, por exemplo entregando-lhe o projecto, encontrar um testa-de-ferro para o assinar, terminando com uma ajuda na vereação, normalmente a do próprio presidente – é que, ao fim de uns anos a falar desses assuntos todos os dias, já toda a gente sabe que ao lado de dois prédios com quatro andares não se pode edificar um com seis. Difícil de conjugar tudo? Talvez, mas dois andares a mais são pelo menos quatro apartamentos e tanto lucro em perspectiva confere confortáveis margens de manobra.

Regressando à nossa história, pelo que percebi da indignada resposta de Sócrates, ele nunca serviu de testa-de-ferro a ninguém. Todos os projectos que subscreveu no concelho da Guarda, onde competia em pé de igualdade com os engenheiros civis locais, eram da sua autoria. Oxalá seja verdade e haja uma excelente e clara explicação para toda esta aparente trapalhada. De resto, como escrevia um leitor do Público, ainda bem que Sócrates se deixou de projectos e se dedicou à política, tão feios são alguns dos prédios de sua putativa autoria.

Aqui vai o link para alguns deles, com uma homenagem a Maria José Abrunhosa, a arquitecta citada no site do Público: http://static.publico.clix.pt/docs/politica/projectossocrates/index.html

Por: António Ferreira

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