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Termidor

1. A juventude é boa para viajar, como sabemos. E excelente para percorrer os paradigmas da atracção e do erotismo. Depois, se for o caso, há que definir um plano, seguir uma vocação, cumprir uma missão. Chegados aqui, só faz sentido estabelecer vida em comum com alguém, se tal desígnio embalar um sonho. Se conseguir tocar ao de leve numa mão que só momentaneamente hesita. Se for a pedra de toque num plano deliciosamente precário. Quem quiser embarcar, bem-vindo à bordo. Quem não quiser, que fique em terra. Sem pingo de mágoa. As mulheres preferem a intensidade à insistência. Porque a primeira faz da segunda simples protocolo da sedução. E a segunda sem a primeira é um perigosíssimo salto no escuro. Há neste abrir e fechar de mãos alguma sageza recatada. Mas não há nada que saber. A sedução é o grande momento da inteligência. Só mais tarde percebemos que a inteligência pouco mais é do que um instinto atrofiado Uma ramificação da árvore da vida com uma selecção afinada no decorrer de milénios. É nesse momento que realmente amamos.

2. No dia de S. João, como é hábito, um desfile equestre animou as ruas da Guarda. Entretanto, já houve uma parada de motociclos. O que têm estas actividades em comum? Nada, a não ser a marca irredutível de um saudável individualismo, o estimável apreço pela liberdade e pelos grandes espaços. Mas as semelhanças acabam aí. Um passeio a cavalo, para lá de um espectáculo com uma cenografia requintada, remete para o tempo. Um tempo onde controlávamos todos os aspectos da nossa existência, sem o delegarmos em maquinismos cujo funcionamento desconhecemos. Um tempo cujo fim foi pressentindo pelos primeiros românticos, agrupados no movimento “Stürm und Drang”, encabeçado por Herder e Goethe. E também por Blake, nos seus delírios panteístas. Foi quando perceberam que a Humanidade iria sacrificar a liberdade à utilidade, a imaginação à Razão. Os seus temas e o seu apreço pelas efusões e dilacerações sentimentais, no fundo, são só a nostalgia burguesa de uma hubris desmantelada pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial. Mas as suas criações literárias, artísticas e musicais são admiráveis. Com interesse para o tema, escolho a extraordinária novela “Michael Kohlhaas”, de Kleist, de que também há um filme. Conta-nos a história de um negociante de cavalos, o qual, algures numa portagem, foi esbulhado da sua mercadoria por senhores feudais pouco escrupulosos. No seguimento, reuniu uma milícia que colocou a região em pé de guerra e assustou os governantes. Que trataram de eliminar a ameaça, propondo uma trégua e uma amnistia, desde que depusesse as armas. Michael recusou. Só se lhe devolvessem os cavalos, disse ele. E assim foi. Nem podia ser de outra forma. A rebelião nasceu em resultado de um acto iníquo. O seu único propósito era a Justiça. Não a vingança, ou o saque. Dessa forma, seria simplesmente um bando de mercenários, comandados por um condotieri implacável e sequioso. Mas se história tem um inegável propósito político, alberga uma metáfora poderosa: os cavalos. A luta pela sua posse não é só uma lide em torno de uma mercadoria. É a recuperação da liberdade, através do seu item mais valioso. Mas as analogias não acabam aqui. Todos conhecem o mito clássico onde o herói Perseu, movido por sandálias com asas, corta a cabeça à Medusa. Mas só o consegue fazer olhando para a imagem da Górgona reflectida no espelho, sob pena de ficar petrificado. Menos conhecido, porém, é o seguimento da história. Do sangue da Medusa nasce Pégaso, um cavalo alado. A leveza brotando do peso.

3. À primeira, parece que muitos de nós acreditam em ideais avassaladores, conduzidos por uma fé à prova de fogo, embalados por um bouquet perfumado de afinidades electivas e resguardados atrás de convicções ideológicas inabaláveis. Mas depois, vai-se ver, e tudo isso não passa de uma colecção de apetrechos da vaidade, ou do vício. E toda essa arquitectura grandiosa não serve senão para nos enganamos a nós próprios. E que o aparato estético e conceptual de nada vale se não se destilar num tumulto silencioso, nas poucas sílabas que formam o universo, numa delicadeza profunda e elusiva.

4. “Ai, o seu telemóvel vibra! “, disse a rapariga da caixa, ligeiramente eufórica, quando lhe passei o dito cujo para as mãos, afim de ler o código de barras do cartão de cliente (que descarreguei numa aplicação muito útil, chamada “Meo Card Mobili”, onde é possível armazenar todos os cartões pessoais em formato digital). “A vibração foi transmitida pelo dono. Quer experimentar também?” Disse eu, armado em atrevidote. Claro que me fez o desconto de cliente…

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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