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Sócrates e os lacraus

Dentre os ensinamentos importantes que a Vida me trouxe realço dois ou três: nenhum estudo, só por si, é completo, donde um permanente aperfeiçoamento (refiro-me, nomeadamente, ao universitário); nada substitui a perspicácia e a observação in loco; o que, em Portugal, passa por ser imprensa de referência é lugar de muitas e desvairadas gentes, uma substancial percentagem das quais está ao mero nível doxográfico (doxografia: registo de opiniões).

Vem isto a propósito da visita de Sócrates a França, a 10 do transacto mês.

Das felonias feudais à dificuldade do rei em se impor aos seus vassalos, ou ao perjúrio e baixeza de Francisco I perante Carlos V; da paradigmática futilidade de Versalhes ao rococó; de uma Igreja Católica tão arredada do seu múnus – ao nível dos seus próceres, pelo menos – que “a filha mais velha da Igreja” assistiu ao derrube de uma substancialíssima parte de Clúnia e de uma notável parte de Conques, v.g., durante 1789 ou a seguir; do imperialismo napoleónico ao caso Dreyfus; da treta da cultura cavalheiresca, a justificar o colonialismo, à colaboração com os nazis; da derrota de Dien Bien Phu à traição feita aos argelinos que optaram por ser franceses e foram “despejados” c. Marselha; de tudo isto a inferência é clara.

Com efeito, a França deve identificar-se como o que verdadeiramente é: débil, prescindível, pérfida – mas uma perfídia que se apresenta sempre com mil sorrisos.

A mascarada de Versalhes constituiu-se como um elemento intrínseco à identidade nacional francesa; e é a isso que qualquer viajante – que não carece de ser singularmente prevenido – denomina “a fachada francesa”. Aliás, as duas mais recentes ondas de tumultos e outros escândalos de que a imprensa vai dando nota, ilustrativos ad nauseam, são a prova dessa falta de profundidade, dessa catastrófica superficialidade.

Era para mim perfeitamente claro que, após a ida de Sócrates a Angola, o português se encontraria com Chirac. Quando a notícia saiu na imprensa apenas confirmou a minha premonição. (Saliente-se que é de política que aqui se fala. Embora o francês, em regra, seja uma concreção da tal mascarada, tenho encontrado em França pessoas de rara qualidade e – a salientar – um soberbo acolhimento e finura nos museus).

… Remontando. “Entre Le Pen e Chirac a escolha foi entre um racista e um ladrão; e optámos pelo mal menor”. A afirmação não me foi feita por um vulgar cidadão, mas por uma notável figura da psicologia gala, que, assim, me sintetizou as últimas eleições presidenciais.

Dentre mais isto significa que a França se move no domínio do puramente laico – assim corroborando o conluio da Igreja com o “Antigo Regime”, até 1789, e as pungentes destruições subsequentes, de que as supra-aduzidas são apenas dois exemplos.

As relações de Estado a Estado postulam um saber profundo e atento além da enésima potência. Portugal que aproveite da França, com contrapartidas, claro, o que os galos tiverem a dar na área científica, tecnológica, ou outra – perfeito.

Sucede é que Paris não tem qualquer interesse na difusão do idioma luso, excepto como meio de penetração nos territórios ex-portugueses – e Portugal não deve ter nenhum interesse na difusão do idioma galo, pura e simplesmente porque este não tem hoje qualquer importância, digamos. Claro que se fala nas neo-colónias francesas, de Marrocos ao Gabão e Congo, mas, na Europa, só na Bélgica.

Outro dado: a pulhice francesa esteve bem presente, há anos, na Guiné-Bissau, quando a sua marinha de guerra estava frente à portuguesa; e os egitanienses não devem esquecer que a Renault esteve na Guarda – e em Setúbal – enquanto lhe conveio. Para quê a memória curta e/ou ignorância?

Não há que admirar-nos que a França vá de mal a pior – move-se no domínio do puramente laico, repito. Assim, que modelo de educação e formação pode propiciar-nos? Ora, ora…

Exceptuado Vasco Pulido Valente, não vejo ninguém, em Portugal, a dizer que a França é isto; E é tanto mais premente dizê-lo, quanto o nosso é um país de francelhos. Aliás, é obrigatório declarar que um homem excepcionalmente sabedor e perspicaz, Ulrich Wickert, já, em VI-1995, escreveu um livro que se tornou um êxito, Frankreich, Die wunderbare Illusion (França, a maravilhosa Ilusão).

O Primeiro-Ministro português deve – imediatamente – dar ordens para que este livro seja traduzido para português a fim de integrar os elementos de trabalho para ele, claro, e para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Por mim, possuo-o desde VIII-98.

Guarda, 3-V-06

Por: J. A. Alves Ambrósio

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