Dentro de alguns dias seremos chamados a votar para eleger os nossos representantes no Parlamento e, por essa via, dotar Portugal de um novo governo. É hoje cada vez mais evidente que a figura dos líderes que se apresentam como candidatos a primeiro-ministro determina em grande medida os resultados eleitorais. Este facto deve-se, como se sabe, à enorme influência dos «media» e, em particular, à televisão, pela sua capacidade de expor ao juízo do cidadão a personalidade integral do candidato a primeiro-ministro. Lembram-se da famosa afirmação de George Bush/Pai «read my lips: no new taxes»? «Vejam como não me tremem os lábios nem a voz quando falo de tão importantes e delicadas matérias», parecia querer dizer Bush. Só a televisão (a comunicação electrónica) pode descer a tão subtis «nuances» e, neste plano, determinar resultados decisivos. A televisão pode permitir ao cidadão a formulação de um juízo simples sobre a personalidade de um candidato usando exactamente os mesmos mecanismos cognitivos que usa na vida do dia-a-dia. Ela simplifica o juízo e possibilita níveis de apreciação que, antes, só a proximidade física tornava possíveis. A isto chama-se personalização da política.
Mas, perante a personalização extrema da política na figura do líder, que dizer do papel desempenhado pelos candidatos locais? É ou não diminuta a sua importância nas campanhas eleitorais, como alguns estudos têm vindo a demonstrar, mesmo quando se trate de sistemas maioritários? No caso actual, com sistema proporcional, os candidatos são propostos «em pacote», com etiqueta partidária. O nível de afirmação pessoal perante a sociedade civil não tem, assim, de ser particularmente elevado. Uma boa afirmação da «marca», cada vez mais associada ao rosto do líder, garante por si só o sucesso das candidaturas locais. E, porque sabem isto, os «orgânicos» locais tendem cada vez mais a garantir peso electivo interno, sabendo que isso lhes poderá garantir um lugar no próprio Parlamento ou nos executivos municipais.
Um sistema como este deveria, pois, ser muito mais exigente do que é, no plano do funcionamento interno dos próprios partidos. São abundantes os casos em que umas dezenas de votos em eleições locais internas garantem candidaturas a presidências de câmara ou mesmo ao Parlamento.
Ora, estas são funções cuja importância transcende a dimensão puramente local e simplesmente partidária. Trata-se de funções institucionais com um alcance nacional. É certo que o deputado é eleito em circunscrições eleitorais territorialmente delimitadas, mas também é certo que ele não é chamado a representar a circunscrição que o elege, uma vez que o seu é um mandato nacional e irrevogável. O próprio Presidente de Câmara é chamado a interagir permanentemente com o poder central e a fundamentar a sua acção não só em termos locais, mas também em termos nacionais.
Na verdade, o que é altamente problemático, do ponto de vista da democracia, é a força de uma prática que vem abrindo uma passagem directa da legitimidade de natureza estritamente partidária – muitas vezes ancorada em procedimentos electivos organicamente distorcidos, por exemplo, por ilegítimas e ilegais «bolsas de quotas» – para uma legitimidade institucional, essa, sim, garantida exclusivamente pela «marca» e pelo sucesso do líder a que a «marca» sempre surge associada. E pode mesmo acontecer que essa passagem venha a ser garantida exactamente à revelia de tudo aquilo que o líder de sucesso representa.
Esta é seguramente uma das causas da famosa crise da representação de que se vem falando há tanto tempo. Ela reside, com efeito, numa «extrapolação» ilegítima da legitimidade partidária para a legitimidade institucional, obtida através do acesso directo ao «pacote» eleitoral que a respectiva «marca»/partido oferece aos eleitores, em especial quando se trata de um sistema eleitoral proporcional.
Quando se fala em «partidocracia» normalmente fala-se da confiscação do mandato institucional pelos directórios partidários. Mas pouco se tem falado desse movimento subterrâneo e generalizado de ocupação das estruturas partidárias com o outro fim de ocupação dos cargos institucionais, electivos ou não, com base nessa frágil legitimidade remota que resulta dos processos electivos internos dos partidos políticos, onde a grande massa dos militantes funciona como massa de manobra para ocupação do poder.
É certo que também aqui os processos electivos são os constituintes genuínos da democracia interna das formações políticas. Mas também é verdade que entre o poder interno nas formações políticas e a oferta de pessoal político no mercado eleitoral tem vindo a afirmar-se um organicismo galopante que tende a excluir, como perigosa ameaça aos poderes internos, tudo o que for exterior aos círculos do poder orgânico. Quem saiba como são constituídas as«bolsas de quotas» internas nos partidos compreenderá melhor o que pretendo dizer. A verdade é que não é bom para a democracia constituir a oferta política com base num asfixiante organicismo sustentado numa legitimidade viciada e alimentado pela apatia política que demasiadas vezes os próprios partidos, com a sua acção, vão fomentando.
Creio, por isso, que deveriam ser os próprios partidos amantes da democracia a promover melhores regras e procedimentos internos, maior controlo dos processos electivos e das quotizações, melhores práticas na oferta de pessoal político, mais e melhor comunicação política interna, mais e melhor abertura ao exterior. Grande causa deste organicismo tem sido aquilo a que tenho chamado o «consociativismo» autárquico, a forma de governo autárquico que mantém eternamente no poder (no executivo) os mesmos protagonistas e que lhes permite manterem autênticos enclaves de poder no plano concelhio, garantindo lugares e gerindo habilmente expectativas de séquitos sempre prontos para a batalha interna porque sempre ávidos das pequenas benesses que o poder permite.
Por: João de Almeida Santos