1. A morte de um poeta leva-nos ao âmago da sua presença no mundo: a diferença, a presença inimitável da sua voz, a sua razão de ser, um projeto de estar escrevendo. E quase sempre esse constitui um defeito de fabrico do poeta, a sua espinha bífida que produz poesia e poemas só seus e uma presença sui generis no meio dos outros. A sua presença lançada aos (contra os) outros. Os poemas assim concebidos são partos com dor e alguns exibem ainda as marcas desse sangue de que vêm untados. Não nascem para servir para qualquer coisa mas para revelar e transformar o que parecia até há momentos indizível e intraduzível. Em Herberto Helder, o poeta de que se fala, a verdade que os poemas constroem desenha-se em manchas extensas e inseguras, deixando muitas vezes vislumbrar, não ver. Não percebemos? Não temos que perceber tudo. Mas conseguimos tocar a fímbria de uma verdade essencial que um visionário conseguiu descobrir nas frestas das palavras e mordeu nas próprias entranhas. Se abrirmos os olhos e os fecharmos a seguir, com as palavras a ecoar e a revelar-se pouco a pouco cá dentro. Quando dizemos de H. H. “o poeta”, compreendemos, em toda a força da expressão, que não é poeta quem quer.
2. Rose, a protagonista de “O Mundo em que vivi”, de Ilse Losa, passou a infância e uma parte da juventude a interrogar-se sobre a sua diferença. Era judia, viveu na Alemanha entre as duas guerras mundiais e por essa altura Hitler, com a sua voz gritada e metálica, lançava nas paradas militares e pelas rádios as suas diatribes contra os que eram a «desgraça do país» e que não defendiam a Alemanha como nação, prometendo “soluções”. Os judeus eram assim erigidos como personae non gratae e bodes expiatórios da pobreza e do desemprego. Quando a jovem Rose se interroga sobre a convivência entre vizinhos alemães, judeus e não-judeus, alguém lhe responde que os alemães “puros” sentem cumplicidade com os seus vizinhos judeus mais próximos mas odeiam todos os outros. Façam as contas. Nesta criança cresce com a idade a interrogação que é dupla para os judeus: a primeira, «porque é que eles sentem isto contra nós, que é que nós lhes fizemos?». E depois a outra: «porque é que nós não somos capazes de defender a nossa posição e nos deixamos levar?». A obra faz eco, no seu decorrer, da sensação de uma trovoada que se sente longe e que no fim da obra «está mesmo sobre nós». Vêm aí coisas más porque uma diferença repele a outra.
3. O multiculturalismo continua hoje a ser um tema atual e a dividir opiniões em todos os quadrantes políticos. O internacionalismo socialista, primeiro, e a globalização depois chegaram a fazer crer que o mundo era só um e que a facilidade de comunicação e o progresso económico resolveriam as diferenças. Não era assim e hoje muitos países de emigração, para integrar e evitar convulsões, vivem no receio de tornar igual ou semelhante aquilo que é diferente. Acontece é que, quando as mundividências são muito diferentes entre vizinhos, quanto mais se protege a diferença (o que Marine le Pen chama comunitarismo) mais ela ressuscita depois em manifestações de hostilidade, ódio e (auto)marginalização. É difícil viver juntos.
A globalização, que transformaria tudo diferente em tudo igual, afinal vem mostrar-nos que é mais aquilo que nos separa do que aquilo que nos une. As imagens de crueldade dos terroristas do Estado Islâmico, cuja força e exibição supostamente não encaixam nos padrões de comportamento ocidentais, são afinal a versão amplificada do que há de mais retintamente humano e animal, o homem «como um psicótico que chega às últimas consequências». Aquelas imagens terríveis são quase encenações do Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud, como «a manifestação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente pelo qual se localizam num indivíduo ou numa população todas as maldosas possibilidades da alma». Procurando no Google as imagens ligadas à palavra “crueldade”, encontramos sobretudo ações sobre animais indefesos. Mas é só para disfarçar.
4. E já agora uma outra diferença, menos escabrosa mas não menos dolorosa. Falo das duas grafias atualmente em vigor na língua portuguesa já que o Acordo Ortográfico nem anda nem desanda. Dói estar a ver no mesmo jornal a grafia do Acordo e a dos que, por escrúpulo ou por preguiça, não aderem à nova grafia. Como é que se entende que na CPLP os políticos não se entendam relativamente a uma estratégia comum de levar o Acordo por diante já que ele está formalmente aceite por todos os países (falta só a ratificação de Angola)? É que não há por aqui qualquer organismo oficial que “puxe” por este Acordo, que vá tirando as dúvidas, que divulgue o Vocabulário Ortográfico Comum. As vozes contra são as que se ouvem mais, ora invocando aspetos de substância ora a pressa e o secretismo iniciais que levaram à consagração do que consideram “aberrações”. Mas continuar assim, nesta ambiguidade, é que não dá mesmo. Quanto ao governo português, sabemos o que pensa, mas saberíamos responder o que pensam neste momento Angola e Brasil? E o que seria da geração que está agora a aprender a grafia nova se daqui a dois ou três anos tivesse que voltar atrás? Não há pachorra…
(Herberto HELDER, “Poemas Completos”, Porto Editora, 2014; Ilse LOSA, “O Mundo em que vivi”, 1943).
Por: Joaquim Igreja
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