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Sem medo, sem esperança

Tresler

Guilherme era um rapazito inocente, tinha 16 anos em 25 de abril de 1974 e a revolução caiu-lhe como sopa no mel naquela fase da vida. Na aldeia beirã onde nascera tinham acabado de instalar a eletricidade mas a vida era aí apenas o intervalo entre duas saídas. As ruas eram de terra e lama, a força de trabalho saíra para França e Alemanha, comia-se ainda pouca carne para além do porco de criação. Mas após a revolução pouco a pouco a carne de frango começou a vulgarizar-se e a carrinha do sardinheiro fazia o seu circuito. Os filhos dos pobres e remediados subiam com os estudos. A vida melhorava.

No seminário onde estudava, depois do 25 de abril o controle era forte e as saídas à cidade eram limitadas. A TV ia mostrando a aragem e o torvelinho, depois o furacão. Deixou-se levar. Eram palavras poéticas, bonitas e certeiras, liberdade à cabeça, depois igualdade também a brilhar, finalmente democracia e poder popular ainda a demorar a secar. Naqueles tempos eram utopias vivenciadas por outros que puxavam os jovens, relativamente pouco viciados em confortos burgueses mas desejosos deles. A música era um luxo mas democratizava-se pela rádio e tornava-se pouco a pouco essencial e objeto de consumo sempre em crescendo. E atraía, cheia de mensagem poética, de anseios de transformação, desse lá no que desse. Na altura a bipolarização era mesmo entre duas visões de vida, as utopias cantavam em forma de amanhãs e faziam-se facilmente verdades na cabeça de um jovem, sendo tanto objetos como sujeitos do seu querer.

Guilherme deixou-se conquistar. Saiu do seminário no Natal de 1974, embarcou numa de fazer exames do Secundário como externo e andou curioso no resto do ano em todas as manifestações daquela cidade de província onde até as paredes batidas pelo sol eram cinzentas. Na greve dos liceus de fevereiro de 1975 agarrava-se à vedação do lado de fora e olhava invejoso os gestos de teimosia dos rapazes e raparigas da sua idade presos por vontade lá dentro. As pinturas murais e suas mensagens vinham com tanto idealismo colado que ficar parado era proibido. Hoje reconhece que uma boa parte da mensagem era mesmo uma lavagem ao cérebro e que gritar pela “ditadura do proletariado” ou pelo “unidade contra o capital” era mesmo um excesso sem sentido. As centrais de informação e propaganda mundial tinham encontrado ambiente a calhar e terreno fértil. Os resultados das eleições de 1975 vieram pouco a pouco colocar as coisas no seu lugar.

Hoje, ao olhar para trás com o véu da nostalgia e de 40 anos de pó do tempo, Guilherme recorda esses momentos como inolvidáveis, mesmo se ridículos vistos do presente. Naquele tempo era assim que se fazia caminho, andando e imitando, na política mas também nas roupas e nos cabelos. Hoje o mesmo jovem não saberia em que revolução encaixaria. Acha mesmo difícil que a sua ânsia de jovem encaixasse ao lado de uma simples reivindicação de reformas ou de salários “mais dignos”. Em que revolução encaixaria se a liberdade não está em causa?

O filho de Guilherme tem hoje 16 anos e o pai revê-se nele. Põe-se ao espelho e imagina-se quarenta anos atrás. Mas não vê nada, infelizmente nada vê de estrutural a que possa agarrar-se e ao filho num desejo de utopia e liberdade. O filho de Guilherme passa horas e horas no computador numa espiral de comunicação total e começou agora a gostar das saídas noturnas. De vez em quando chega tarde e sabe que começa a irritar os pais. Mas a hesitação juvenil fica por aí. E no entanto, ao olhar para o lado, mesmo com 16 anos, consegue detetar os sintomas de uma crise que não sabe para que lado irá e quando ou como rebentará. O desejo dos mais velhos seria que desaguasse em estuário de águas paradas mas ninguém pode garantir nada. Guilherme e o filho veem o fenómeno do abandono da escola por efeito de uma força centrífuga da instituição, da indisciplina diária numa escola imutável, dos jovens sustentados pelos pais depois da universidade, da mobilidade social invertida, com as expectativas de uma vida transformadas em vergonha escondida de pais e filhos, da emigração dos melhores ou dos corajosos.

Guilherme não pode deixar de pensar no filho. Sente-se no entanto simultaneamente sem vontade de alinhar em revoluções. É que não há revoluções em regimes livres nem a esperança desembocaria hoje numa porta de saída para qualquer coisa. Que visão da vida e do mundo seria hoje a base duma revolução? Que mundo alinharia ao nosso lado por uma revolução contra o atual retrocesso? O anseio (vago) é que até ao fim do secundário e do superior do filho as coisas “se componham”, que o elevador social volte a andar. Para já olha para trás com gosto e lembra-se daqueles anos de 1974-75 em que aprendeu aos tropeções e por imitação o que era a liberdade. E lamenta que não haja nada que faça o seu filho perceber quanto vale a sua liberdade.

(Na última crónica, a propósito da obra “Ressuscitarão os mortos?”, indiquei como autor Manuel Alberto Vieira de Matos, sendo o nome correto Manuel Alberto Pereira de Matos. Ao autor e aos leitores as minhas desculpas pelo lapso.)

Por: Joaquim Igreja

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