1. Uma destas manhãs, estava tranquilamente na sala a tomar o pequeno almoço. O rádio estava ligado, como sempre. A meio do sumo de laranja, oiço uma fulana à conversa com um emplastro, cujo matraquear não me era estranho. Pelo desenrolar da conversa, vi logo que devia ser um psicólogo, psiquiatra, ou assim. Fui por exclusão de partes: pelo registo vocal não era o Eduardo Sá; também não era o Amaral Dias, pois estava longe da acutilância deste. Então quem seria o gajo? O tema era… sim, já adivinharam, pois, o sexo. Então cheguei lá: era o Júlio Machado Vaz, o sexólogo e tal! Uma espécie de “rapariga para todo o serviço”, quando se trata de perorações avulsas nessa matéria. A páginas tantas, por entre banalidades a granel sobre “excitação” e “complexidade da sexualidade feminina”, vem o momento alto da converseta: as fantasias sexuais. Aqui, o preclaro Vaz, representante da pedagógica geração de 60, foi im-pla-cá-vel, de tal forma que a outra nem troco dava: “nem de mais nem de menos”, “partilhadas com o/a parceiro/a”, “vividas a dois”, “deviam ser assim e assado”, “desta maneira ou daquela”, “cuidado com não sei o quê…”, etc. Fiquei sem fala! Nem a “rádio escolar” que era obrigado a ouvir na primária, no antigo regime, me deixou este sabor a autoridade por via hertziana. A sensação de que há sempre uns senhores que sabem tudo a nosso respeito, tudo o que é melhor para nós, que já adivinharam os nossos pensamentos mais secretos, que desconfiam dos nossos segredos, para depois nos servirem outros, já embalados, normalizados, híbridos inofensivos, de acordo com as modas e a correcção política. Os mesmos que fixam modelos para os nossos sonhos, na extensão, na viabilidade, no alcance. Repare-se, sempre a dois, com o “parceiro” – mas que raio de termo este, faz logo lembrar uma figura do direito civil chamada parceria pecuária, em que existe um parceiro proprietário e um parceiro pensador – como se essa fosse a norma, com quem se “partilha tudo”, é claro, mesmo os sonhos, as fantasias, sob a supervisão dos psis de serviço. Exactamente os mesmos que fixam moldes para a educação, para a aprendizagem. Que sabem sempre qualquer coisa que nós não sabemos. Mas que têm um pavor enorme e inconfessado da fantasia, a verdadeira. Porque intuem o seu enorme poder transgressor, visto que assegura a ligação ao centro, à vitalidade, à verdadeira humanidade. Encaram-na como qualquer coisa instrumental, que é preciso praticar, sem exageros, como quem se solta de um espinho incómodo, de preferência “a dois” e com o manual de instruções à frente. Na sua ausência estará lá o Vaz, pois claro. Que então explicará melhor as questões omissas. Sem deixar de prescrever o que cada um de nós poderá fantasiar. Não vá o diabo tecê-las…
2. Doris Lessing foi recentemente entrevistada no “The Guardian”. Às tantas, afirma a jornalista autora da peça, que “como todos os meios de comunicação ressaltaram, Doris Lessing é apenas a 11ª mulher recompensada entre os 104 laureados do Prémio Nobel da Literatura.” Mais à frente, “se Doris Lessing não é uma escolha assim tão surpreendente, talvez seja, entre outras razões, porque ela é, acima de tudo, uma escritora de ideias e de ideais.” Se houvesse um detector de politicamente correcto em cada artigo de jornal ou prelecção académica, era muito difícil não começar logo a apitar com veemência. Neste caso, poupei trabalho ao leitor a aqui ficaram registadas duas pérolas dessa má consciência, que degenerou num whisfull thinking serôdio e totalitário. Em relação à mais básica, a distribuição do prémio pelos géneros, ela fala por si. Mas seria interessante saber quantos dentistas já foram galardoados. E quantos chineses? E quantos esquimós? E quantas donas de casa de Cincinatti? E quantos ex-nadadores-salvadores? E quantos húngaros com pé de atleta? E quantos membros da tribo Massai? A lista seria interminável. De resto, para quem sente a literatura mais perto de si do que a veia do pescoço, como é o caso do escriba, será que um galardão que ignorou Borges, Yourcenar, Lobo Antunes ou Duras tem alguma importância? No entanto, a partir de agora e para minimizar o “escândalo”, deveria haver quotas para mulheres nobelizadas. Neste momento, o saldo está em 93-11 a favor desses hirsutos e primitivos usurpadores dos talentos femininos. O que quer dizer que, nos próximos 80 anos, deveriam ser unicamente premiadas mulheres. Ou então, num assomo de liberalidade, os descendentes de Greene, Camus, Hemingway, Mann, Kipling, Beckett, Faulkner, Eliot, Hesse ou Steinbeck, deveriam entregar os prémios a uma associação feminista qualquer, que depois daria conta do recado. Em qualquer caso, as laureadas seriam sempre, de preferência, escritoras de ideias e de ideais. Por essa ordem, claro.
Por: António Godinho