I – O regresso das trevas
No mês passado passou na RTP 2 um excelente documentário sobre as seitas fundamentalistas cristãs que proliferam nos EUA. Assumem-se como a consciência moral da América. Fazem coincidir, ad nauseum, os valores que defendem (ao fim ao cabo, um programa político ultra-conservador) com os pilares básicos da Nação. Não permitem a entrada nos seus templos a homossexuais e a mulheres que praticaram aborto. Um cristianismo de fino recorte, como se nota. Mas os cabecilhas não dormem em serviço. Ao pé deles, a tropa de choque da Igreja Católica – a Opus Dei – parece constituída por escuteiros: são lobistas legítimos em Washington, onde organizam campanhas impressionantes sempre que está em causa a discussão de legislação “sensível”, assumindo-se como bloco eleitoral de facto; durante as campanhas eleitorais, distribuem panfletos pelos crentes, aconselhando o voto nos candidatos com perfil cristão. Invariavelmente republicanos, está bom de ver (eis a verdadeira razão por que Bush ganhou as últimas presidenciais); organizam assembleias religiosas que parecem um misto de estúdio televisivo em hora de reality show, sessão de brainstorming intensivo e campanha de marketing pseudo-espiritual. Assustador. A verdadeira espiritualidade está ausente, é claro. Substituída por uma transcendência de supermercado, a que democraticamente todos podem aceder, sem demasiadas perguntas. Para a juventude, organizam uns concertos “tipo MTV” onde, a páginas tantas, um assanhado grupo rapper se transforma num coro de querubins trazendo a boa nova. Os líderes têm invariavelmente um ar gorduroso, repelente, com reminiscências pedófilas. E contas bancárias recheadas, com toda a certeza. Esta ultradireita religiosa chegou a colaborar na propagação do terror, no pós 11 de Setembro, através do envio de cartas contaminadas com antrax. Mas a “coisa” vende. Progride nos Estados do Sul e do Midwest. Pode tornar-se um sério embaraço num país que, embora invocando sempre Deus, criou o estado secular e o primado da lei. Estes “cristãos” descendem directamente do Arcebispo Cirilo de Alexandria. O tal que, em 415, incitou os seus monges e a chusma a matarem a derradeira cientista pagã da Biblioteca de Alexandria, Hipátia. Cirilo foi santificado, é claro. E aposto que Hipátia foi massacrada não por ser pagã, mas por ser mulher da ciência. São epígonos de Ireneu (130-202), um Padre da Igreja que proclamava que os gnósticos e os pagãos tinham sido identificados como agentes de Satanás e que praticavam actos de canibalismo. O clima é o mesmo, sendo as nuances determinadas pelas tecnologias utilizadas: impor as ideias ao próximo por amor (Vd. Arno Gruen, Falsos Ídolos). Este fim justificava e continua a justificar o emprego de todo o tipo de violência. É a génese do espírito inquisitorial, do medo, das guerras “santas” e das trevas. Com Deus fora do baralho.
II – Os amigos são para as ocasiões
Este ano repete-se o escândalo: entre as várias organizações “amigas” do PCP presentes na Festa do Avante durante este fim de semana, pontuam as FARC (um grupo narco-terrorista colombiano que sequestrou Ingrid Betancourt, candidata à presidência naquele país, e matou 11 deputados também raptados). Já no ano passado a situação foi amplamente denunciada. Confirmadas estão igualmente as presenças do Partido Comunista de Cuba, Partido Comunista da China, Partido Comunista da Bielorússia e PT da Coreia do Norte. Estruturas que, como se sabe, velam pelo estabelecimento dos direitos fundamentais e das regras democráticas nos respectivos países. E que, correspondendo ao apelo do partido irmão, se vêm reunir em volta do fogo da solidariedade internacionalista. Nunca como aqui foi tão verdadeiro o ditado popular “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”. Todavia, a escassez de reacções condenatórias é aviltante: grande parte da comunicação social e da opinião pública “de esquerda” continua a ignorar a afronta. Como se a máquina comunicacional do PCP, que não cessa de enaltecer as virtudes monstruosas do “socialismo real”, criasse um muro de silêncio, capturasse uma autoridade moral tão anacrónica como insuficientemente desmontada. Criando um inconfessado escrúpulo em encarar os factos: à medida que iam chegando os sinais da derrocada do movimento comunista internacional, o PCP foi-se acantonando à volta de fantasmas, de ícones de uma meta-história desmentida pela história, de monstros nascidos do ressentimento e da ausência da razão. Tal como na célebre gravura de Goya.
Por: António Godinho