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Se fôssemos espanhóis…

Theatrum mundi

A relação com uma ‘coisa’ chamada Espanha mostra bem da natureza esquizofrénica do que é o sentimento de ser português. As expressões públicas e privadas do facto oscilam entre a absoluta necessidade histórica, por um lado e, por outro, que o mesmo é dispensável e desadequado no mundo globalizado em que vivemos. O que há de esquizofrénico nisto é que, em maior ou menor medida, mais ou menos vezes, todos somos afectados pela contradição e todos oscilamos entre a euforia do espírito da História e a depressão da sua negação recorrente. A alimentar a esquizofrenia, ou melhor, a complexidade, para não abusar da semântica psicanalítica, a forma como se pensa e ensina a história de Portugal. A libertação do Atlântico a par da opressão castelhana, a inovação das descobertas a par da tensão do aniquilamento iminente, as possibilidades económicas da abertura ao mundo a par do fechamento metropolitano. A sobrevivência de Portugal é um milagre da História, conseguido à custa da sua reinvenção permanente. Contudo, a contingência da ‘coisa’ está sempre presente, na incredulidade do sucesso como na frustração do desaire. Entre o Atlântico e a Espanha, o sentimento não podia ser menos complexo, nem menos dual. Um a lembrar as oportunidades da existência separada, a outra a apelar às possibilidades da integração e da escala. Sem sequer mencionar que, até aos tempos de Carlos V, Espanha era uma ‘coisa’ de toda a península e que o rei português reclamou da usurpação do nome por entender que Portugal também era Espanha e que nenhum soberano tinha direito exclusivo sobre o nome. Sem sequer mencionar que Camões era bilingue e que em Os Lusíadas descreveu a “Espanha como cabeça da Europa toda”. A península, entenda-se.

Talvez por isto não sejam de estranhar as recorrentes manifestações de uma difusa vontade de Ibéria, sempre incapaz de cristalizar num projecto político coerente. Mais significativo do que qualquer sondagem é o recurso ao ‘dissolução ibérica’ como arma de arremesso cada vez que a administração central limita ao mínimo os serviços que presta às populações do interior desertificado. Á parte a contabilidade dos ganhos tecnocráticos com a reorganização dos subsistemas da educação e da saúde, por exemplo, a verdade é que, e lembrando a perplexidade colocado pelo António Ferreira na edição da semana passada, as nostalgias iberistas são sempre a expressão de um certo sentimento de derrota e de desencanto com o estado a que chegou Portugal. A ‘coisa pública’ não vai bem e o estado português é demasiado centralizado, ineficiente e continua a contribuir para a crescente desertificação do interior. A complexidade do sentimento de ser português é que impede que a manifestação dessa frustração se transforme em mais qualquer coisa, em projecto alternativo. O ajuntamento popular que contesta o encerramento das urgências locais bem pode clamar que “preferimos ser espanhóis”, mas essa não é a verdade. O ajuntamento popular recorre ao enunciado como expressão de suprema humilhação colectiva, como autoflagelação, e utiliza-o como arma de arremesso dirigida contra um poder político que coloca as populações entre a espada da degradação da ‘coisa pública’ e a parede da renúncia colectiva. Assim, nada mais resta senão pensar o impensável, desejar o indesejável que é a dissolução do vínculo colectivo e expressá-lo, em directo, para toda a comunidade, sabendo contudo que isso não vai acontecer e que nunca se daria um passo para o levar a cabo. É como se se dissesse: “Vede o estado a que isto chegou, para nos obrigarem a dizer o que não queremos dizer!” Por isto mesmo, as sondagens que tanta tinta fizeram correr, em Portugal como em Espanha, pouco têm que ver com sentimentos iberistas; são antes a manifestação de uma frustração incapaz de tratamento catártico ou de encontrar projecto realista alternativo.

Por: Marcos Farias Ferreira

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