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Sair da crise para ficar tudo na mesma?

A maneira como sairemos desta crise é tão importante quanto sair dela o mais rapidamente possível. Se o mundo capitalista não entender as lições que a crise encerra, se não quiser entender que a principal razão para este desastre planetário tem que ver com a falta de regras de conduta éticas nos negócios, mais tarde ou mais cedo tudo voltará ao mesmo, depois de os governos se terem endividado de forma impensável para tapar os buracos abertos por uma classe de gestores irresponsáveis e gananciosos. É preciso que as regras mudem radicalmente, que os culpados paguem e que todos fiquem com a certeza de que o crime não compensou nem compensará jamais. Sob pena de a explosão social das vítimas do crime se tornar fora de controlo, como já vai havendo indícios em França.

Interessa muito pouco a discussão jurídica sobre a retroactividade do imposto de 90% que o Congresso dos Estados Unidos criou ad hoc para fustigar os indecorosos prémios de gestão que os administradores da AIG resolveram atribuir-se. Interessa é que o supremo insulto de ver administradores que levaram uma firma à falência e destruíram milhares de postos de trabalho pegarem no dinheiro dos contribuintes americanos com que o Governo os socorreu para se outorgarem prémios de gestão, só porque estava no contrato, não pode ser tolerado. É por isso também que não é tolerável que o dr. Faria de Oliveira venha dizer que o fantástico acordo de dação em pagamento feito pela Caixa com o sr. Manuel Fino se justifica como um “negócio bancário normal”. Talvez fosse infelizmente normal, mas deixou de ser aceitável que o banco do Estado arrisque milhões a financiar raides de especuladores bolsistas e que depois, quando as coisas correm mal, se descubra que não consegue cobrar os seus créditos e que nem sequer pode ir aos bens pessoais dos devedores (como sucede com todos nós), porque eles ou os têm em offshores ou em Fundações, para mais isentos de impostos. Acabar de vez com esse cancro das offshores – verdadeiro roubo legalizado às nações e instrumento fundamental da grande corrupção e lavagem de dinheiro criminoso, é a primeira das prioridades no pós-crise. Depois, se não querem enfrentar nas ruas a multidão de desempregados que todos os dias cresce, ensinem esses gestores de luxo a terem vergonha e decoro – já que culpa ou responsabilidade são noções que lhes são totalmente estranhas.

Regras de comportamento e de conduta ética severas, responsabilização dos prevaricadores, punição do capital especulativo que não cria riqueza nem paga imposto, são as primeiras consequências a extrair no mundo que amanhã terá de nascer dos escombros deste. Mas é preciso também que a crise e o combate a ela sejam aproveitadas como uma oportunidade para mudar o paradigma de uma economia fundada no lucro imediato, na destruição dos recursos naturais, no consumo de energia sem limite, na poluição do planeta. Não se trata de salvar esta geração, mas de salvar o mundo para as gerações que se seguirão. Esse é o lado mais estimulante da mensagem política de Obama: a necessidade, não de salvar o que existia, mas de salvar a economia e mudar o que existia. E é aí, precisamente, que a estratégia de combate à crise do Governo de José Sócrates me deixa descrente e deprimido.

Aparentemente, Sócrates acredita poder sair da crise recorrendo às panaceias do costume e aos suspeitos do costume, os seus habituais companheiros nas viagens de Estado – entre os quais se incluem alguns dos maiores malfeitores da nossa economia. Se eles abrem a boca queixando-se da crise e reclamando apoios públicos – seja o sr. Amorim na cortiça ou a Mota-Engil nas obras públicas – o Governo apressa-se a despejar-lhes em cima TGV, aeroportos e auto-estradas, pontes e terminais de contentores, milhões e milhões a perder de vista, garantias de crédito, seguros de exportação e até o pagamento dos salários aos seus trabalhadores. Quem está próximo do poder, aproveita, como de costume; quem está longe, que se amanhe; e o grosso das pequenas empresas que aproveite as auto-estradas, as pontes e os viadutos para se pôr ao fresco.

O tempo de crise vai também propício aos predadores. Basta apresentar um projecto em que se acene com a criação de uns tantos postos de trabalho (podem ser dezenas, centenas ou milhares, que ninguém vai confirmar) e tudo será aprovado e até beneficiará de incentivos fiscais, subsídios de toda a espécie e celeridade processual. É, por exemplo, a época de ouro para construir qualquer coisa em qualquer lado, desde um apoio de praia em cimento a 30 metros das ondas e em plena areia, na praia de Armação de Pêra, até um centro comercial ocupando 22 hectares em Vila Franca de Xira, violando todas as regras de construção vigentes e contribuindo para liquidar todo o pequeno comércio local – no país da Europa que já tem o maior índice de metro quadrado de grandes superfícies por habitante. A regra parece ser não pensar, não planear, não hesitar: tudo menos um exército de desempregados na rua, daqui até às eleições de Outubro.

Daqui, resultarão várias consequências que pagaremos caro no futuro. Obras sumptuárias e inúteis, que criarão apenas postos de trabalho precários e à margem da lei e que se transformarão, elas próprias, num problema, financeiro e urbanístico, amanhã; empresas sem viabilidade nem utilidade real que sobreviverão apenas pelos dinheiros públicos, ao lado de outras que sucumbirão, não por falta de mérito, mas por falta de capacidade de influência política, aumentando mais ainda a crença dominante de que para sobreviver num mercado concorrencial é preciso estar encostado ao favor do Estado; o que resta do património natural vandalizado por invocado “estado de necessidade”; e, enfim, a mais preocupante das consequências que é o endividamento que sobrará para o futuro – para muito depois de resolvidas as eleições de 2009 e a própria conjuntura económica que atravessamos.

Ou seja, arriscamo-nos a sair desta crise com um país pior, mais degradado, mais injusto, menos competitivo e garantidamente mais endividado. Passando de uma crise da economia real para uma crise financeira do Estado. Sem termos aprendido nada e não tendo aproveitado a emergência para mudar de regras de jogo e de paradigma de desenvolvimento.

P.S. – O mesmo Governo que distribui dinheiro às mãos cheias por toda a gente, prepara-se para tomar uma pequena-imensa medida que diz muito sobre o seu conceito de justiça social e as suas preocupações com a economia real: o aumento, mais um, das taxas de justiça, que hoje já são incomportáveis para a generalidade das pessoas e das pequenas empresas. Não contente com isso, determinou que agora, se alguém quiser intentar uma acção cível ou for constituído réu numa, tem de pagar logo o grosso das custas à cabeça, como se tivesse perdido a acção. O objectivo parece ser o de limpar uns milhares de processos pendentes nos tribunais, a benefício de estatísticas de boa governação. A mensagem é que o Governo prefere ficar bem nas estatísticas do que assegurar a todos o direito à Justiça – que é uma das razões fundamentais da existência do próprio Estado

Por: Miguel Sousa Tavares

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