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Sabes que te amo não sabes?

Vidas

Eram quatro da manhã e ouviu-o abrir a porta. Pelo barulho que fazia e pelas horas que eram só podia estar alcoolizado. Fingi que dormia e rezei para que caísse de bêbado no sofá da sala. Mas Deus devia estar ocupado com outras orações, certamente mais importantes que a minha. Entrou no quarto de rompante e sem que eu tivesse tempo para pensar em nada, agarrou-me pelos cabelos e arrastou-me até à sala. Pedi-lhe, por favor, que me largasse, disse-lhe que o nosso filho estaria a ouvir. “ Filho, qual filho minha puta, deve ser é filho de algum dos teus amantes”.

Eu nunca tive amantes. Nem sequer me atrevo a olhar para outro homem. Mas todos são meus amantes. O colega da fábrica. O Sr. João da mercearia que tem para aí 70 anos. Tomamos café na padaria da esquina, e o rapaz que está ao balcão também é meu amante, assim como o vizinho do rés -do-chão.

“ Tenho fome. Arranja-me qualquer coisa para comer e uma cerveja”- E ao mesmo tempo deu-me um encontrão contra a porta.

Fiz-lhe duas sandes e levei-lhe a cerveja. “ Mas que merda é esta? Achas que isto é comida para um homem? “ – e lançou as sandes contra a televisão que estava ligada. “ Limpa esta merda…és uma puta que não serves para nada! E traz-me comida a sério, não brinques comigo senão vais-te arrepender”.

Fiz o que mandou e fui para a cozinha preparar uma refeição quente. Aqueci também a sopa que sobrou do jantar.

“Senta-te e serve-me”.

Servi-o e deixei-me estar à sua frente enquanto comia. Olhava para aquele homem e tentava encontrar algo que ainda sobrasse da razão de um dia ter gostado dele. Fiz um esforço sério, mas só me consegui lembrar da primeira bofetada. Da tareia de quando estava grávida que me levou a estar duas semanas no hospital. Do murro que me fraturou o nariz. Da humilhação de me ter deixado nua duas horas à porta de casa. Da proibição de visitar a minha família. Devo ter perdido a memória ou a minha cabeça está tao cheia de ódio, de nojo e de tristeza que não cabem lá as boas recordações.

“ Sabes que eu te amo, e que és a mulher da minha vida, não sabes?”

Baixei os olhos e pensei em dizer-lhe que preferia que não me amasse tanto … que preferia que encontrasse outra mulher para a sua vida.

“ Sabes não sabes” ?

Vi o meu filho espreitar por uma fresta da porta e com o olhar disse-lhe para se deixar estar, que estava tudo bem, que não tivesse medo.

“ Sabes não sabes”?

Disse que sim com a cabeça.

Por: Carla Freire

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