Neste último fim-de-semana marquei, contra uma das minhas regras mais sagradas, duas entrevistas com clientes. No sábado, pelas 14 horas e 15 minutos estava apressadamente a sair de casa. Com tanta pressa que não vi um cão deitado à porta do prédio e com tanto azar, para ambos, que ele também não deu por mim. Apenas recordo, desse instante, o chão a fugir-me debaixo dos pés, o cão a ganir de dor e eu, em pleno voo, a pensar “matei o bicho”. A chegada ao chão, lembro apenas que foi de barriga e que procurei proteger a cabeça com a mão direita.
Imóvel por um instante, fiz rapidamente o inventário das dores. O cão, quanto a ele, ganindo ainda, parecia saber já de que se queixar. Passados alguns instantes achei que iria sobreviver e que era melhor levantar-me; ainda atordoado, decidi que era preferível não me servir para isso da mão direita e que talvez não fosse boa ideia olhar para ela. Pelo menos antes de arranjar coragem.
A mão estava torcida num ângulo impossível, parecia um pedaço disforme de carne a pender do braço, tinha um inchaço nas costas e estava a ficar violácea em vários pontos. Parecia ter ficado ondulada, parecia outra coisa que não a minha mão direita. Começava a doer, e doeu ainda mais, com uma dor excruciante, quando tentei mexer um dedo.
Quando toquei à campainha a minha mulher pensou primeiro que me tinha esquecido, como de costume, de alguma coisa. Cinco minutos depois estava no hospital. Avisei na recepção, depois de mostrar ao que vinha, que poderia desmaiar a qualquer momento. Deram-me rapidamente uma cadeira e, pouco depois, em frente à “sala do gesso”, deitaram-me numa maca. O Dr. Eliseu, de serviço à urgência, tratou de me aliviar das dores, de mandar tirar a primeira radiografia (era uma fractura do colo do cúbito) e foi-me dando apoio moral enquanto não chegavam os ortopedistas, retidos numa cirurgia.
Entretanto, iam passando no corredor várias caras conhecidas e eu ia contando repetidamente a minha aventura. A mão tinha passado a doer menos, sob o efeito dos analgésicos, mas agora latejava. E não havia uma posição confortável para arrumar o braço direito. Qualquer movimento, qualquer toque, pareciam capazes de anular o efeito da petidina.
Quando os ortopedistas chegaram, desci da maca e esperei que acabassem de ver as radiografias. Quando entrei foram-me dizendo que o osso fracturado estava partido em vários pedaços e que a coisa tinha mau aspecto.
O Dr. Eliseu tinha-me prevenido de que a redução da fractura iria doer, mas tinha-me poupado os detalhes. O Dr. Pessoa agarrou-me com cuidado na mão, fez um sinal ao colega (Dr. Lemos?) de que só depois percebi o significado e, enquanto um enfermeiro me segurava nos ombros, puxaram ambos, com força e sem aviso prévio, um pela minha mão e o outro pelo braço. Como à primeira não ficasse no sítio exacto, ainda tive tempo para dizer “eu sabia que isto ia doer”, repetiram a manobra e, enquanto eu me contorcia e berrava quanto podia, única forma de aliviar o sofrimento, torceram a mão para esta ficar direita e carregou, um deles, com força, no martirizado sítio em que o meu osso estava estilhaçado em vários pedaços, unificando-os outra vez, como por milagre, num só. As dores e as suas náuseas amainaram quase de imediato, misericordiosamente, como me tinha prometido o enfermeiro. Tudo isto levou muito tempo e terminou em apenas dez segundos, demonstrando que a eternidade, mais que um conceito, é uma opinião.
Aqui termina o meu relato, teclado laboriosamente no computador com um dedo da mão esquerda enquanto o braço direito, embrulhado em gesso, inicia a primeira das suas cinco semanas de cativeiro. E agora, se não se importam, quando me virem na rua não me voltem a perguntar o que aconteceu.
Por: António Ferreira