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Recordando o Arquitecto António Mendes

Não considero vulgar que alguém com uma vida profissional intensa em Lisboa percorra 300 quilómetros, todos os 15 dias, para passar o fim-de-semana numa pequena casa numa aldeia distante da Serra da Estrela. Isto aconteceu durante não sei se 30, se 40 anos mas, fosse o que fosse, era um dos grandes prazeres da vida do Arquitecto António Mendes.

Nesses dias, na serra, abandonava-se à reconstrução da velha casa, dava longos passeios através de montes e vales, participava e apoiava interesses locais e, certamente, refazia as energias para próximas jornadas.

Enormes as raízes que havia na sua alma e que, silenciosamente, o arrastavam para a terra dos seus ancestrais. Estranhas também as razões que o tornaram uma pessoa singularmente diferente, com valores simples, sábia e com uma serena paz interior.

Havia sempre um certo mistério à sua volta, uma barreira que a amizade de décadas não transpunha, qualquer coisa que tornava natural uma despedida súbita ou a oferta de uma prenda, sem motivo aparente.

Compreendia a essência das coisas e do que estava por trás delas. Apercebia-se da estética, da história e da utilidade de objectos que passariam despercebidos à maioria dos mortais.

Os objectos que foi comprando e armazenando ao longo de anos, muitos deles adquiridos em lojas de ferro velho, ou em casas demolidas, pareciam ganhar alma transformando-se em peças valiosas.

Tudo o que os familiares necessitavam de arquitectura ele fazia. Fazia com empenho e à sua maneira. O modo como vivia a profissão sempre me surpreendeu. Era uma mistura sistémica de conhecimento, experiência e instinto. Considerava sempre as práticas do passado, a evolução das coisas e uma perspectiva pragmática para atingir as soluções que pretendia. Valorizava estes pontos sempre acima do custo final, às vezes de forma ingénua e persistente. Mas, no final, ficava sempre aquela sensação de que fazia a arquitectura com um prazer enorme e de que, para ele, a profissão não era um compartimento separado na sua cabeça. Estava lá com a mesma naturalidade que as ligações familiares ou o prazer da comida.

Não havia no seu trabalho qualquer estratégia motivada por ganância ou por qualquer forma de exploração. O dinheiro não significava muito para ele. Tinha, porém, um modo bem beirão de economizar e uma enorme aversão de gastar dinheiro mal gasto, como se diz por aqui.

Adquiriu com esta filosofia e as qualidades que referi um prestígio profissional e uma reputação de equilíbrio reconhecido por todos os colaboradores e pessoas ligados à sua profissão.

O nosso relacionamento sempre foi excelente embora se tivesse tornado relativamente pouco frequente nos últimos anos. Nunca tive dúvidas das suas grandes qualidades mas surpreendi-me, ao escrever estas linhas, de quantas coisas eu admirava na sua pessoa sem me aperceber disso.

Lembro-me sim, de identificar no nosso diálogo, com frequência, uma revolta declarada contra algumas mudanças que ele achava afastarem o homem da sua essência e de valores que deveriam ser mantidos. Eram opiniões, às vezes radicais, que quase sempre manifestava de forma curta e irónica.

Não consigo pensar uma lógica que enquadre a sua morte. Todas as formas de encarar o aparecimento da sua doença e morte, são injustas para mim.

Fico a pensar que, com o seu desaparecimento, se perde uma enorme quantidade de saberes e sentimentos únicos, de formas boas de se ser humano, de filantropia e de simplicidade.

É interessante aperceber-me de que uma parte da sua grandeza é a quase completa ausência de protagonismo que caracterizou a sua vida. É por isso também que eu achei importante escrever isto.

Ele deixou de passear pelas veredas da serra, deixou de nos dar a lição de respeito pelo passado que sempre nos deu, deixou de falar com as gentes da terra que tanto amou, deixou de resolver os problemas de tanta gente que o procurava, deixou de ensinar o operário a colocar a viga no sítio certo, deixou de fazer o cálculo da varanda para a irmã e deixou de fazer tudo isto da mesma forma discreta que o fazia.

Eu não quero ser discreto a dizer que sinto a sua falta como amigo, como pessoa e como exemplo.

João Pedroso de Lima, Torroselo (Seia)

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