A trapalhada sobre a transferência do Infarmed de Lisboa para o Porto dominou o comentário político da última semana. O anúncio pelo ministro da Saúde, subscrito pelo primeiro-ministro, foi uma esmola ao Porto por não ter sido escolhido para a instalação da Agência Europeia do Medicamento (EMA) – na verdade, a partir do momento em que o Governo quis agradar a Rui Moreira, candidatando o Porto em vez de Lisboa, as possibilidades de a agência vir para Portugal passaram a ser ínfimas. Sem estudos que sustentem a decisão, o governo anunciou que a Autoridade Nacional do Medicamento iria para o Porto. Uma esmola de quem afinal não tem nenhum plano para a descentralização e que criou uma embrulhada no primeiro momento em que decide desconcentrar serviços. E uma esmola que se irá transformar num logro.
Na forma, a trapalhada merece a crítica generalizada, mas poucos falam da substância. E os que falam é para defender o status quo lisboeta. Muito para além dos custos da mudança, do investimento em laboratórios ou na “vida” dos 350 funcionários, está um “establishment” que não admite que Lisboa possa perder alguma coisa para quem quer que seja, mesmo que seja para o Porto. É a cidade-Estado no seu melhor. Lisboa está a receber milhões de fundos comunitários que eram destinados à coesão (a que a capital não devia ter acesso) e que deviam ser destinados a outras regiões (o governo anterior conseguiu impor a Bruxelas o argumento de que o investimento em Lisboa teria efeito multiplicador nas demais regiões). E Lisboa concentra não apenas a maioria do investimento público não estruturante, como recebe as receitas e os impostos de centenas de empresas que laboram no país mas têm a sua sede social na capital (desde logo as maiores empresas). Por isso, quando olhamos para a putativa transferência do Infarmed, mesmo não tendo dúvidas que foi tudo feito em cima do joelho e que por isso vai haver recuo no todo ou em parte da decisão, devemos perguntar porquê para o Porto e não para a Guarda ou Covilhã, ou outra qualquer cidade? E devemos recordar que ao longo de anos vimos centenas de serviços e empresas públicas serem transferidos da “província” para Lisboa e ninguém rasgou as vestes, ninguém falou da insensibilidade de obrigar os trabalhadores a mudarem de cidade. E devemos recordar que durante dezenas de anos, os serviços públicos, todos, foram multiplicando a sua dimensão nas principais cidades, não apenas em Lisboa, mas também no Porto ou em Coimbra… mas nunca nas cidades do interior. (Há três anos, o governo de então, transferiu, com surpresa, a empresa de Águas de Lisboa e Vale do Tejo de Lisboa para a Guarda. Na prática foi transferida a “sede” e a tabuleta, tudo o mais continuou onde estava: em Lisboa, para onde regressou entretanto. Duas ou três vezes no ano 2015 os administradores reuniram na Guarda. E pagaram os impostos na Guarda! Perto de um milhão de euros de derrama… Pena que entretanto a sede tenha voltado para Lisboa). E Santana Lopes, também sem um plano ou um estudo, mandou a secretaria de Estado da Agricultura para a Golegã, mas em 2005 Sócrates “recuperou-a” para Lisboa onde tudo o que importa acontece e onde os agricultores alfacinhas precisam de pedir subsídios à produção. Muito mais do que atacar a transferência do Infarmed para o Porto (seguindo os comentadores e os interesses lisboetas) devíamos estar a interrogar sobre outros serviços que podem funcionar noutras cidades e estão na capital. Devíamos perguntar, por exemplo, porque razão a Agência Portuguesa do Ambiente não está na Guarda, ou o IPMA, ou as Águas de Portugal, ou…
Por cá, têm de ser os privados, os pequenos empresários locais, a resistir e a investir contra todas as contrariedades; ou empresas extraordinárias como a Coficab, que vai construir uma nova fábrica, uma unidade de produção para o futuro, um investimento de 25 milhões de euros para desenvolver produtos para a condução autónoma e a conectividade dos automóveis.
Parabéns à Guarda pelos 818 anos, e parabéns a quem, perante os constrangimentos e os custos da interioridade, resiliente, escolhe o país e não apenas Lisboa ou o Porto. Mesmo que todos, até os de “cá”, prefiram concordar com os de “lá” na defesa da narrativa centralizadora, da cidade-Estado e do país inclinado para o litoral. Uma ladainha que nos cabe combater.
Luis Baptista-Martins