Arquivo

Queijos, marquises e outras invenções

Ouvindo os Europe, ignorando DST´s e envergando fartos bigodes e inflexíveis permanentes, os anos 80 corriam loucos. A obra pública e privada avançava tendo apenas como travão um Adamastor chamado taxa de juro. Nascia o modelo “sustentável” de crescimento do PIB português. O banco financia, a obra arranca e com o tempo e sorte paga-se. A entrada na CEE, os fundos estruturais e a entrada no Euro foram, cada um a seu tempo, completando o Eldorado Português, uma anfetamina com efeitos colaterais difíceis de antecipar.

A Guarda, cidade que em séculos pouco se tinha aventurado para lá da muralha, lança-se pela encosta ao encontro do caminho-de-ferro e pelo caminho, com poucas e honrosas exceções, deixa um rasto que nos faz corar perante forasteiros tal a falta de ambição na construção de uma cidade mais congruente. Para trás ficavam questões menores de harmonia, equilíbrio, beleza e caracterização. Neste contexto, o fascínio pela caixilharia surge como forma de afirmação rápida na conquista de espaço vital. Um vírus que rapidamente dizimou a cidade, classificado de “Love on Top” de pouca vergonha urbanística, e estavam assim lançadas as bases para essa grande instituição nacional, a marquise.

Praticamente indiferente e imune a esta febre do alumínio, protegido por um paredão legal que atempadamente conseguiu prever a hecatombe que se projetava ao longe, continuava o velho e medieval casco do centro histórico, que perdendo centralidade e consequentemente habitantes e importância, preservava a identidade da cidade. Aquilo que a torna distinta entre tantas outras. Sim, porque nas marquises somos iguais à Damaia.

Ainda assim, e num crescendo de projetos, movidos por uma sede alucinante de reabilitação sem rumo definido, e decisões no mínimo questionáveis, houve quem olhasse para um dos mais emblemáticos edifícios da cidade e tenha pensado: “O que esta praça necessita para adquirir dinamismo é um estabelecimento público que venda queijos da serra… e se possível numa marquise a executar nos antigos Paços do Concelho”. Até me podem dizer que não fere o PDM, que a providência cautelar não faz sentido, que o caixilho não é de PVC e que é latão… porque o que é verdadeiramente uma lata é continuar sem soluções de fundo para o centro histórico e começar por partir um incisivo central intacto quando o resto da dentadura está podre e esperar um sorriso bonito na fotografia. Não acontece com essa intervenção, nem com policarbonatos impossíveis, nem com telas mágicas ou elevadores.

Já tivemos a nossa dose de inércia quando, cumprindo todas as normas legais, estudos de impacto ambiental e toda a cartilha moral de Dijsselbloem, assistimos à colocação de redomas de ferro e vidro exatamente em frente à muralha, monumento nacional, na Av. dos Bombeiros Voluntários Egitanienses, com o brinde de nunca terem sido terminados. Aceitar agora este projeto tal como está, sem saber sequer se algum dia será a sede da CIM Beiras e Serra da Estrela, o nosso prato de lentilhas, é que merece reflexão sociológica. Como pode uma cidade deixar que uma entidade multimunicipal que abriu em Salamanca uma loja com estas características e não a conseguiu manter aberta um ano nos quer convencer que aqui será diferente? E acreditem, deve ser bem mais difícil encontrar um bom queijo da serra em Espanha.

Por: Pedro Narciso

Sobre o autor

Leave a Reply