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Protestar aos pontapés

observatório de ornitorrincos

Sabemos que vivemos tempos extraordinários quando a canção de protesto do momento nos apresenta um grupo de punk rock (comendadores da nação, é certo) a mendigar atenção a um senhor engenheiro. O respeitinho com que abordamos o século XXI exclui um refrão que utilize alternativas típicas dos anos 80 como “oh meu, topa-me aqui esta cena” ou uma versão hipotética de 1975, “camarada, agora vais ouvir a comissão popular”. Até o inicio do célebre discurso que Shakespeare pôs nos lábios de Marco António (“Amigos, Romanos, compatriotas, emprestem-me os vossos ouvidos”) tem um tom mais subversivo do que a canção dos Xutos e Pontapés. Há 30 anos atrás, um refrão assim seria reaccionário. Hoje é o hino das manifestações da CGTP.

Eu, que sou dos que festejam o 25 de Abril a 25 de Novembro, fico emocionado por ver a esquerda contestatária a cantar na rua por um bocadinho de atenção. Ainda por cima de um senhor engenheiro. Nas janelas dos últimos pisos das administrações, a reacção olha para o espectáculo embevecida.

Imagino Ermelinda Duarte em pranto convulsivo quando ouve a frase “Dê-me um pouco de atenção”. Se calhar os Xutos não se sentem, como a criança ou a gaivota, assim tão livres de dizer e muito menos de voar.

A verdade é que se o “senhor engenheiro” da canção for o Primeiro-Ministro, um pedido de atenção não basta. Numa entrevista televisiva da semana passada, a jornalista Judite de Sousa pediu aproximadamente mil vezes a atenção do chefe do Governo e ele nunca lha deu. Não é por mal, o engenheiro Sócrates não pode perder-se em atençõezinhas a este e àquele. (Escrevo engenheiro Sócrates para não confundir com o filósofo Sócrates, um chato de primeira que andava pela rua a dar atenção a todo o bicho careta e a fazer perguntas difíceis. Pensando bem, os dois Sócrates estão numa espécie de antípodas da atencionalidade. A meio entre os dois está o Sócrates da selecção brasileira de 1982, que distribuía o jogo maravilhosamente – como o grego – e pensava tudo sozinho – como o nosso. Zico podia ser o craque, mas quem mandava era Sócrates.)

A missão do nosso Líder é levar-nos para o futuro e neste filme não há nenhum Doc Emerett Brown com um DeLorean para nos transportar. (Se não percebe esta referência procure no imdb.com, não seja preguiçoso). Por isso o Líder explica, o Líder demonstra, o Líder ilustra. O Líder não pode perder tempo a dar atenção a tudo o que lhe perguntam. Muitas vezes quem pergunta nem sabe o que o Líder precisa que seja perguntado. Assim não vale a pena pedir atenção.

Os autores da letra afirmam que o engenheiro da canção não é o Primeiro-Ministro. Parece que “senhor engenheiro” foi uma escolha do acaso, podia ter sido “senhor doutor” ou “senhor arquitecto”. Ficamos informados que as possibilidades semânticas dos Xutos ficar-se-iam, em qualquer dos casos, pelo tratamento respeitoso do título académico. Para canção de protesto e desrespeito continuo a preferir a velhinha Etelvina do Sérgio Godinho, que dizia a quem passava de carro “morde aqui a ver se eu deixo” e lhe prometia um pontapé no queixo.

No queixo dos Xutos não há pontapés. Apenas um leve tremor reverencial e um beicinho se não lhes derem atenção.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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