1. Observo com atenção o modelo de comunicação promovida pelos staffs dos candidatos a/e dirigentes políticos locais. Trata-se de uma fórmula estandardizada, igual em todos os partidos. Predominam os tons de epopeia. Uma espécie de longa caminhada gloriosa, onde as estrelas vão ao encontro de uma vaga de fundo imparável. De um anseio colectivo pelas suas presenças e discursos motivadores. Um amor a que os políticos não têm outro remédio senão corresponder, num propósito imaculado e redentor. Porém, esta cosmética esconde a prosaica realidade: um quadro político em ascensão numa estrutura intermédia precisa de espingardas; os apoiantes precisam de empregos e facilidades diversas; a promessa de acesso a ambos pelos primeiros atrai os segundos como o mel atrai as moscas; para suavizar o negócio, arranjam-se duas ou três bandeiras de conveniência; agitar bem e está pronto a servir.
2. No ano passado, foi tornado público que o município de Alfândega da Fé liderava o ranking autárquico da transparência. Ora, para quem não sabe, aquela Câmara é presidida por uma médica, que se fez acompanhar de uma equipa predominantemente feminina. Que estão de parabéns. Todavia, o facto não surpreende. Tirando alguns casos mediáticos, a corrupção não entusiasma por aí além o género feminino. Mais uma qualidade, entre tantas, que não me canso de sublinhar. As mulheres, tendencialmente, preferem dar todos os passos para chegar ao seu objectivo. Ir sempre a jogo, com o máximo de trunfos que conseguirem fazer valer. De preferência demolidores, mas sempre legítimos. Pois sabem bem que, como as regras não foram feitas por elas, só ganham em tirar partido delas, cumprindo-as. Ou tornarem-se as suas fiéis depositárias. Podem até mover favores e jogar por fora, mas não corrompem nem se deixam corromper. Excepcionalmente, as mais expeditas fazem outra coisa: caucionam os negócios duvidosos praticados pelo marido/namorado/parceiro. Veja-se o caso das contas suíças da cara metade de Salgado.
3. Recentemente, reencontrei um amigo da adolescência. Problemas de saúde debilitaram-no consideravelmente. E o balão de uma vida desregrada rebentou, sobrando uns farrapos de borracha à mercê do vento. O meu amigo é maior do que muitas vidas. Mas foi vencido, sem o saber, pelo vírus de uma irrealização turbulenta. Ainda que plena. Foi derrotado por uma carnalidade delirante que a idade transforma em caricatura. A sua genuinidade é tocante. Apesar de acompanhada por uma solicitude cansativa. Porém, não soube evitar a cristalização da memória. A calcificação do pensamento. Descurou a leveza, a rapidez e a agilidade. Deixou fugir, por entre os dedos, o momento essencial em que escolhemos, sem hesitações, o que nos pode iluminar e o que nos apaga. Os amigos são assim. Um livro aberto, mas com anotações que é preciso decifrar.
4. O problema do cínico é a sua perspectiva de visão. Dificilmente consegue captar um plano frontal. Socorrendo-se, invariavelmente, de ângulos esquinados e linhas oblíquas. É certo que, nos layers distorcidos e nas superfícies recônditas, o cínico descobre um sentido oculto. Desvenda um enigma. Capta a banalidade do absurdo. O cínico é o ginasta da inteligibilidade. Faz o reconhecimento do terreno e impede a sonolência da imaginação. Mas se ele define a estratégia para a batalha, é preciso a audácia e a fortuna para a ganhar. Porque o cínico até pode tornar a vida suportável, ou a realidade suficientemente escancarada para poder fingir que não acredita nela. Mas se a beleza devastadora surge, ou se um alçapão se abre no desenho, ou se uma graça delicada e inebriante o toca, o cínico não tem defesas. Tropeça. Dá conta do seu erro de cálculo.
5. Leio, num prefácio, uma pequena lista de ousadias vocabulares coligidas da obra de Teixeira de Pascoaes. Expressões como “sombra do vento”, “asa de luar”, “ruínas de tristeza”, “vultos de segredo” e, sobretudo, “fontes doidas de ternura”. São imagens que nos devolvem o cântico primordial, por entre a poeirenta confusão do mundo. E servem generosamente o propósito do autor de “O Bailado”: “a poesia canta o silêncio, que se conserva silencioso.”
6. Olhamos para nós. Ficamos embevecidos por julgarmos que hoje sabemos mais coisas do que sabíamos antes. E que antes não tínhamos as ferramentas para a sensatez ou a ousadia que hoje manejamos com desenvoltura. Como se naturalmente caminhássemos da indecisão para a clarividência. Da precariedade para a solidez. Da penumbra para a luz. Mas não é assim. O melhor que conseguiremos fazer é enganar-nos melhor. Dispensar algum ruído para ligar o que antes ligávamos sem alarde. Retirar o lastro que atrapalha. Deixar para trás a sabedoria como uma progressão inexorável e abraçá-la como uma tarefa contínua, onde se recua e avança ao sabor da incerteza. Por isso, é fundamental chegar o momento em que os nossos erros deixam de ser um enigma. Em que conseguimos expor-nos ao vendaval do absurdo, sem vacilar. Em que escutamos até ao fim a mais cruel e redentora das revelações.
Por: António Godinho Gil