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Pradial

1. Na política local, um pouco por todo o país, há um novo artigo em saldo: as candidaturas partidárias abertas a independentes. Trata-se de uma pura manobra táctica, levada a cabo por duas razões: ou porque a identificação partidária é um activo tóxico e se tenta com a operação mobilizar faixas do eleitorado que, naturalmente, fariam outras escolhas, inclusive nenhuma; ou, muito simplesmente, por défice de militância. O resultado é, com algumas nuances, semelhante: candidaturas esvaziadas de qualquer conteúdo ideológico, centradas num cabeça de lista que, ou fez obra, ou quer fazer, mas de outro tipo. E todos eles só sabem ser oponentes, nunca tentando ser contraponto. O objectivo implícito é criar a aparência de uma força eleitoral do tipo a que os anglo-saxónicos chamam “catch all”, que poderíamos traduzir por “transversal”. Repare-se que não se trata aqui das candidaturas de “Grupos de Cidadãos independentes”, previstas no arts. 48.º, n.º 1, da CRP e 16.º, n.º 1, al. c), da LEOAL. Não. São candidaturas partidárias. Submetidas a uma lógica partidária, do tipo vertical, sem margem para “invenções”. Onde os independentes são pouco mais do que cheerleaders da festa, com carinha laroca. As excepções, que existem, contam-se pelos dedos.

2. O fascínio das pequenas coisas! Mania de poetas e avaliadores de casas. Mas centremo-nos nos pequenos e fascinantes pormenores da inteligência. Um exemplo. Estar em aceso diálogo com uma mulher deslumbrante, num bar nocturno, diante de uma mesa já com algumas garrafas. Não sabeis, mas nessa altura já todos os vossos poros comunicam, meus caros! Nada escapa à mobilização geral do vosso talento e da vossa fragilidade. E se essa mulher for mais inteligente do que vós? Keep calm! O mais natural é que isso aconteça. Nesse caso, meus bravos, não desistam. Recuem até aos primórdios da linguagem. Inventada precisamente para estes momentos delicados. Mostrem tudo. Como quem deixa escapar o consentimento, na última oferta de um acalorado regateio. Ela fala mais depressa do que vocês. Pensa a velocidades de cruzeiro. Chega sempre antes de vocês onde quer que seja. Mas nunca a aborreçam enquanto espera! Metam o turbo. Voem. Inventem! Tentem recriar o encontro de duas aves exóticas que se reconhecem no voo e olham para o mundo com sobranceria. “Olha, também por aqui!?” A certa altura, percebereis que ela chega antes, mas só porque sabe que lá vos encontra. Um luxo, é o que vos digo!

3. A liberdade de expressão é um bem precioso. É nas suas margens que mais tem que ser defendida. E a sua extensão mede-se continuamente, em modo work in progress. Embora grátis, tem um preço. Conhecido na hora em que se paga. Alguns tentam fazer dela moeda de troca. Outros vêm nela um perigo permanente. Na verdade, são maiores as ameaças que a condicionam, ou amordaçam, do que os males que ela pode causar. Mas há uma modalidade de condicionamento que me diverte particularmente. É quando alguém chama a atenção para algo que disse, ou escrevi. Não porque seja erróneo, ofensivo, imoral, ou objecto de contraditório. A razão é, simplesmente, não ser conveniente. E esse limite não é mais do que a tal moeda de troca, que eles decidiram que temos de pagar por algo que julgam que nos venderam. No meu caso, deixo-os sempre de mãos a abanar. Com uma bucha para o caminho.

4. “Caudal ofensivo”, “na cara do golo”, “Em zona de despromoção”, “vitória sofrida”, “pentear a bola”, “jogar bem de costas para a baliza”, “tranquilidade no meio da tabela”, “agressividade no bom sentido”, “descolar do X e encostar ao y”… O futebol como IPSS linguística…

5. Perante aqueles que um dia chegaram a ser importantes para nós, o tempo provoca uma acção que, à falta de melhor, chamaria bipolar. Por um lado, põe a nu as nossas limitações, como uma cruel autoscopia. Por outro, revela as alheias, às quais não soubemos estar atentos no devido tempo. Todavia, pode ainda acontecer outra coisa. Se, em vez da severidade de um juízo, optarmos pela aceitação de uma oportunidade, conseguiremos diluir o outro na coreografia do grato esquecimento. E nós, ficaremos mais valiosos. Um bocadinho mais completos. Especialmente quando tocamos um lugar que ainda não é nosso, mas já deixou de ser dos que nos rodeiam. Quando reconhecemos, na vastidão dos gestos sem morada, ou da matéria fundamental da terra, os vultos que se evadem da paisagem. E com eles descansamos.

Por: António Godinho Gil

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