A Praça Luís de Camões, vulgo, “praça Velha”, é um dos ex-libris da cidade da Guarda, o “postal ilustrado” e sala de visitas, da qual nós guardenses, nos congratulamos de existir. Tem escala de grande praça Espanhola ou Italiana, num país sem grande tradição de praças, e tem como cenário e mesmo motivo de existência a monumental Sé Catedral, a qual já abordei anteriormente.
Tendo sido recentemente, alvo de uma intervenção arquitectónica e de reconfiguração do espaço, não sem as habituais polémicas e opiniões divergentes surge-me neste momento a oportunidade e a vontade de tecer algumas considerações sobre esta importante obra. Surge esta intervenção no âmbito do Programa Polis, sendo o projecto da autoria do Arq. Camilo Cortesão, um dos membros do ” star system” da escola do Porto, à qual pertenço e dela me excluo. Começou o ” burburinho” à volta da intervenção, pela deslocalização da Estátua do D. Sancho. É de facto um elemento de 1953, cuja importância não ultrapassa o de simples memorial ao Rei fundador da cidade, mas por outro lado as justificações para o deslocar para o enfiamento da rua da Torre dos Ferreiros e da antiga ligação da Porta de St. Clara à rua direita, parece-me a mim, que se prendem com questões apenas de enquadramento na máquina fotográfica ( a pensar nos turistas), quais japoneses ansiosos de eternizar o momento e sem saber “olhar”verdadeiramente.
A sua localização não me incomodava ao ponto de fazer disso a premissa base da intervenção, mas de tudo o que se fez, parece-me ainda a acção menos polémica e consensual.
Se por um lado, concordo com o despojo da solução encontrada para a praça, uma vez que não precisa de artifícios de projecto para existir, porque existe por ela mesma pela monumentalidade da Sé Catedral ( que deveria ser alvo de um projecto de iluminação condigno que a valorizasse), por outro lado Camilo Cortesão fez suas as palavras do mestre Mies Van der Rohe- ” less is more” , sem a preocupação de fazer desse menos mais. É uma intervenção , na minha opinião simplória, porque fazer simples é exigente e é a ambição de muitos, mas poucas vezes se concretiza. E o “simplório” é o pior dos estigmas que uma intervenção arquitectónica pode ter. Elogio o bom senso, de não se ter optado por soluções de “arquitectura espectáculo à la província” com fontes luminosas, ou árvores, elogio o despojamento e o granito.
Mas a perfeição, reside no pormenor, e é nos pormenores que esta intervenção me parece falhada. Nos pormenores da iluminação, que poderia ter sido uma iluminação de chão, mais discreta, e não os candeeiros absurdos que lá existem iguais a tantos outros que abundam por aí. Os pormenores do mobiliário Urbano, com aquelas floreiras em inox a “armar ao moderno”.
Por outro lado, e uma vez posto de lado o túnel de ligação entre a rua 31 de Janeiro e a Misericórdia, e existindo o corredor de circulação automóvel ascendente até ao Largo Amândio Paul, não sou de todo favorável à eliminação de estacionamento automóvel na praça. Eliminar automóveis das praças, dos centros históricos, das cidades é sem dúvida o sonho de muitos, mas não deixa de ser uma utopia. Eles são uma realidade, e a única forma de lidar com eles é prevê-los em Projecto. Estando a praça Velha tão deserta de serviços e equipamentos, e com um tipo de comércio tão pouco apetecível, quem irá “passar-estar-ficar “na Praça Luís de Camões ? Quantos dos cidadãos da Guarda poderão estar um mês inteiro sem ter necessidade de ir lá? A deslocalização de serviços indispensáveis à vida quotidiana daquela praça, ditou-lhe de certa forma a morte como espaço central cívico e cultural da Guarda. Por outro lado, um dos acontecimentos que mais me chocou neste processo, foi a indiferença com que foram tratados os achados arqueológicos, descobertos aquando da remoção do antigo pavimento e desaterro. Ossadas,sepulturas antropomórficas e fundações de antigas edificações, tudo ficou “agranitado”, não havia tempo a perder com “antiguidades inúteis”.
A possível existência aqui de uma necrópole anterior à idade média, altera a nossa percepção histórica em relação ao povoamento da Guarda, e se as ossadas e sepulturas não contribuem grande coisa para o conhecimento que poderemos ter da história da cidade, já as fundações de antigas edificações poderiam ter um valor importantíssimo na compreensão da Guarda medieval, da qual temos tão poucas informações. Poderia ter-se optado por outro tipo de soluções de pavimentos que visasse fazer da praça velha um objecto de estudo e compreensão da história da cidade. Pareceu-me leviana a forma como estes acontecimentos foram abordados, e sob este ponto de vista , é leviana e grave a intervenção de carácter permanente e irreversível que aqui se fez.
Por outro lado, não basta ter um pavimento novo, é na minha opinião essencial, criar-se um sistema de incentivos para se requalificarem os edifícios envolventes à praça ( e não uma requalificação de fachada, apenas) ou na hipótese destes incentivos não serem acatados, avançar-se para obras coercivas. Depois, há ainda a questão, do estabelecimento e definição de uma estratégia de ocupação dos edifícios. Que comércio queremos para ali, que serviços, que usos ? A verdade é que a Praça Luís de Camões, não vive com o tipo de comércio e serviços que ali está implantado, e não são dois ou três cafés que até põem umas mesas cá fora no Verão, que vão fazer da Praça um lugar apetecível e aprazível para passar-estar-ficar. Não basta querer ir lá, é preciso ter que ir lá, e por este motivo, uma estratégia comercial bem definida, parece-me essencial. È verdade que uma “intervenção de autor” é muitas vezes o ponto de partida para novas cidadanias e centralidades ( veja-se a transformação de Trancoso, “apenas” pelas intervenções do Gonçalo Byrne), mas os “autores” às vezes são discutíveis. Não acredito em consultas públicas, mas a verdade é que teria sido desejável,a exposição pública de propostas e a discussão, não já em cima da obra consumada, mas antes de ser retirada a primeira pedra. Agora, já só nos resta ver como a obra vai envelhecer e ganhar maturidade.
Por: Carla Guerra