José Sócrates foi o primeiro candidato a primeiro-ministro que inscreveu no seu programa eleitoral a intenção de desvincular as receitas das autarquias da cobrança que lhes cabe referente aos impostos sobre a propriedade imobiliária. Na altura, eu saudei efusivamente a sua anunciada intenção, porque finalmente ouvia alguém disposto a terminar com esse incentivo à especulação imobiliária e à devastação paisagística que consiste em uma autarquia ter tanto mais dinheiro quanto mais construção autoriza. Pareceu-me um sinal altamente positivo, vindo de alguém que, aliás, deixara créditos firmados como ministro do Ambiente.
Mas José Sócrates, primeiro-ministro, tratou logo de se esquecer da promessa feita por José Sócrates, candidato a primeiro-ministro. Pior do que isso: sob o seu alto patrocínio e responsabilidade, temos assistido ao assalto final, com requintes de barbaridade e selvajaria jamais vistas, ao que resta da paisagem protegida e ainda não estragada em Portugal. A filosofia em vigor com este Governo pode ser exemplarmente definida por uma frase daquele senhor que usa a alcunha de ministro do Ambiente, referindo-se às autorizações dadas para a construção de milhares de camas turísticas em áreas da Rede Natura na costa alentejana: “Não fazemos dos valores naturais um obstáculo ao desenvolvimento económico”. Está tudo dito: é impossível ser-se mais claro. E aterrador.
E, se assim o pensa o Governo, melhor o faz. Em 24 de Maio de 2005, o Conselho de Ministros aprovou a Resolução nº 95/05, pela qual o Governo se propunha incentivar “mais e melhor investimento” através de “empresas fortes, dinâmicas e ambientalmente sustentáveis”, para o que passaria a apoiar directamente “projectos com especial valia nos planos económico, social, tecnológico, energético e de sustentabilidade ambiental”. E como? “Promovendo a superação dos bloqueios administrativos e garantindo uma resposta célere, sem prejuízo dos mecanismos legais necessários à salvaguarda do interesse público, nomeadamente a nível da segurança e do ambiente”.
Nasciam assim os malfadados Projectos PIN, que estão rapidamente a transformar Portugal num país mais feio, mais degradado e ambientalmente insustentável. Nestas coisas, por mais que a experiência já nos tenha ensinado a não criar ilusões, há sempre uma esperança que as boas intenções que escorrem como água cristalina das páginas do ‘Diário da República’ não sejam apenas um embuste e, por vezes até, como é o caso, capazes de produzirem o efeito exactamente contrário àquele que se apregoa. Eu imaginei, de início, que os projectos PIN se destinavam, realmente, a incentivar investimento criativo, tecnologicamente avançado, inovador, eficiente energeticamente e amigo do ambiente, capaz de fazer renascer a nossa indústria moribunda e ensinar-lhe que existe mais vida para além da mão-de-obra barata. Enfim, acreditei nas boas intenções do Governo.
Alguns projectos PIN, é justo que se diga, vieram ao encontro dessas intenções. Mas um ano e meio de experiência feita mataram quaisquer ilusões. Se se esperava sobretudo investimento estrangeiro, a maioria é agora nacional; se se esperava investimento na indústria, nas áreas tecnológicas, em I&D, a maioria é sim na construção turística de massas e na especulação imobiliária. Por isso, aliás, é que a maioria dos projectos é nacional: porque os especuladores imobiliários do costume viram nos PIN um autêntico ovo de Colombo para – sem estudo de impacte ambiental obrigatório, sem discussão pública prévia e até sem conhecimento público prévio – terem desde logo aprovados pelo Governo, apadrinhados e acelerados por ele, projectos que, de outra forma e em países civilizados, morreriam no papel. Basta que juntem a módica quantia de 25 milhões de euros (e, quanto maior for o projecto, mais fácil chegar lá) e que os serviços dependentes do tal senhor que responde pelo título de ministro do Ambiente atestem que, conforme exige a lei, o projecto tenha “adequada sustentabilidade ambiental e territorial” – coisa ainda mais fácil de conseguir do que juntar 25 milhões: que o diga o Algarve e a costa alentejana, onde os projectos PIN chovem a um ritmo mais frequente do que os dejectos de gaivota.
E basta preencher estes dois requisitos e mais quatro de sete objectivos secundários previstos na lei e facilmente justificáveis para que os projectos PIN consigam o milagre de inverter o ónus da aprovação. Uma vez reconhecido com a chancela PIN pela respectiva comissão de acompanhamento, o projecto já tem o OK do Governo e o seu apoio através de uma chamada “entidade dinamizadora” – que, como o nome indica, vai-se substituir aos interessados, actuando como sua advogada junto da Administração local e central, exigindo imediata obediência e operacionalidade, queimando todos os prazos e dispensando todas as formalidades que um simples cidadão que queira aumentar em dez metros a sua casa não consegue. E, quanto maior for o projecto imobiliário, maior é a sua “sustentabilidade ambiental e territorial”, segundo o Ministério do Ambiente, e maior é o empenho do Governo na sua rápida consumação. Deste modo, um projecto PIN, em rigor, nem chega a ser projecto algum: é um requerimento particular que, uma vez aprovado rapidamente (no máximo, em 30 dias), transforma-se numa espécie de decreto administrativo que não é impugnável nem discutível e que a todos colhe de surpresa, vinculando toda a Administração, derrogando todas as leis e procedimentos administrativos de salvaguarda e fazendo tábua rasa do respeito pelas zonas vedadas à construção – com a consequente realização de fantásticas mais-valias que nem sequer são fiscalmente tributadas. Era exactamente aquilo de que os nossos “dinâmicos” empresários do imobiliário turístico precisavam para poder dar largas ao seu estremado amor ao país. Nem nos seus melhores delírios eles ousaram alguma vez sonhar com uma benesse destas! E ainda lhes dizem que estão ao serviço do “interesse público”!
Escusado será dizer que a miragem dos postos de trabalho sempre anunciados aos milhares e publicitados acriticamente pela imprensa se destinam a ser preenchidos por ucranianos, romenos, brasileiros e angolanos – por quem tenho toda a consideração, mas não ao ponto de sacrificar o que falta do nosso património natural para lhes dar trabalho. Escusado será dizer que morrem assim de vez quaisquer veleidades de levar a sério as declarações habituais sobre a protecção do ambiente e a promoção do turismo de qualidade.
Olhe, dr. Manuel Pinho: tenho muita pena de não poder aceitar o seu amável convite para a inauguração do ‘Allgarve’. Gostava de o ouvir pessoalmente esclarecer que o ‘Allgarve’ significa que desta vez é que o Algarve todo, falésia por falésia, vai ser sepultado em betão. A bem do interesse público.
Por: Miguel Sousa Tavares