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Por quem os sinos dobram (II)

“…sempre que visitamos essa época pretérita de nós, parece ficar uma sensação de irremediável…”

Manuela Duarte em “Alma, de Manuel Alegre”, O Interior de 29/01/2004

Mal sabia a infeliz colunista, ou cronista, ou comunista, expressões frequente e erroneamente confundidas por causa da comum sufixação em ista, o quanto estava certa.

De facto o seu granítico município e outros agrupamentos populacionais que com ele partilhavam aspectos geológicos e arquitectónicos (tais como a idólatra Tracoso, famosa pelo seu prolífico padre e as suas sardinhas doces, a acastelada Slorico da lua nova e do céu estrelado de onde saltavam trutas e a falconada Inhel), que se mantiveram ligados aquando da célebre reforma da administração territorial do princípio do século XXI que criou o embrião das regiões tais como hoje as conhecemos _ as chamadas comunidades urbanas _, viriam a conhecer décadas de ostracismo e abandono.

Mas penso que ficaria contente se pudesse saber que a Sé da Guarda e a sua Câmara Municipal viriam um dia a transformar-se no símbolo heráldico da nossa principal fonte de energia, o radão, já conhecido, mas muito receado, na altura, pois ainda estava longe a descoberta da forma de neutralizar os seus efeitos perniciosos e aproveitar o seu potencial.

Esses dois belos testemunhos da Idade do Granito Lascado e da Idade do Granito Polido, respectivamente, há muito que foram tragados pela gigantesca cratera em que se transformou a mítica Serra da Estrela (tão alta, tão alta, diz-se, que quase tocava os céus), devido à exploração intensiva a que o radão foi sujeito a partir dos fins do 1.º século da nossa Era. Mas continuam presentes na nossa memória cibernética e podem ser visualizados, por quem estiver interessado, na página interactiva do referido Museu.

A senhora opinava ainda estar profundamente satisfeita com o rumo que as coisas estavam a tomar pois “efectivamente a Guarda está a ficar movimentada demais para o meu gosto” e até estaria a pensar mudar-se para “Trancoso”, onde provavelmente ainda haveria tílias e ovelhas, porque normalmente quem gostava de uma coisa, gostava da outra.

A seguir pedia desculpa por não apreciar Hemingway por ali além e dava graças a Deus por haver tanta gente a escrever livros, porque assim já haveria mais por onde escolher quando se tratasse de atribuir um Nobel.

Continuava citando um outro colunista do mesmo jornal, um tal Nuno Amaral Jerónimo, que “corajosamente elogia uma revista feita em Vilarelho, Trás-os-Montes” que a própria não conhecia, mas que ia tratar de conhecer quanto mais não fosse por se chamar Periférica e falar de um tal Richard Zimler, ao que parece muito apreciado por ambos, mas cuja memória não nos chegou porque, como sabem, só conservamos os consagrados e adiantava que isso “é a prova provada de que o tamanho dos sítios não se correlaciona necessariamente com a qualidade das coisas que neles é feita”.

Lamentava a seguir que as coisas boas, inovadoras e importantes feitas no seu Hospital (Hospitais: sítios sinistros onde naquele tempo se tratavam os doentes) não fossem valorizadas pela respectiva Administração e terminava pedindo desculpa por, ao contrário do seu colega de jornal Fernando Badana, não ter pena nenhuma da forma como um tal de Miklos Fehér tinha morrido e dizendo que gostaria de ela própria morrer assim, rapidamente, a fazer algo de que gostasse.

Sim, porque, por estranho que pareça, naquele tempo as pessoas ainda não eram livres para, na medida do possível, escolher o momento e a forma de morrer, como nós hoje fazemos.

Gente complicada esta, não é verdade? Até os nomes eram esquisitos. Grandes e perifrásicos.

Mas, acreditem, vale a pena visitar o Museu do Interior.

Mium, 2224

Por: Maria Massena

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