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Ponto de origem

Quebra-Cabeças

Uma das características mais distintivas do temperamento dos católicos é, dizem-no os protestantes, a sua relação doentia com a culpa, apenas equiparável à facilidade com que, através do perdão, lhe passam uma esponja em cima. Isto explicaria a primeira reacção típica de um católico ao suceder de uma desgraça: “quem teve a culpa?”. E isto presume, claro, a existência de culpa, ou falha humana, sempre que alguma coisa corre mal. Daqui recorre que esta propensão para a busca de alguém a quem punir acaba por ser contraproducente: quando não há culpados e se insiste na existência de algum, então a verdadeira causa nunca é apurada.

Isto é apenas uma teoria e não lhe daria muita importância se não começasse a reconhecer inquietantes e persistentes padrões de comportamento que parece quererem confirmá-la. No caso dos incêndios florestais, por exemplo, as reportagens televisivas recolhem sempre testemunhos que juram pela origem criminosa dos incêndios com a certeza de quem não consegue, sequer, conceber uma outra possibilidade. Fala-se com insistência em misteriosas avionetas brancas não identificadas que lançam estranhos artefactos incendiários e deixam, após a sua passagem, um trágico rasto de fogo. Aparecem periodicamente boatos que responsabilizam alguém: lembro-me, por exemplo, de que em 1975 os culpados eram os comunistas, de que nos anos oitenta se falava nos madeireiros, nas celuloses e nos empreiteiros, de que houve alturas em que se dizia que eram os pastores, para conseguir pastos para as ovelhas, ou então que eram os próprios bombeiros, para alimentar um negócio de milhões.

De teorias da conspiração, de dedos acusadores apontados em todas as direcções, estamos, como se vê, servidos com abundância e para todos os gostos. Estas teorias dão jeito porque, havendo um culpado exterior à comunidade, esta pode eliminar a sua própria culpa e manter os seus hábitos e procedimentos. Falta, para terem alguma consistência, é uma coisa de que gostam os protestantes e é prática corrente nos países anglo-saxónicos. Falta a verificação desapaixonada dos factos no terreno. Falta ir, sistematicamente, ao ponto de origem de cada incêndio determinar – e tornar pública – a sua causa. É possível saber-se onde um incêndio começou e como. É possível e é fundamental, porque apenas assim podem ter sentido políticas de prevenção e combate ou podem avançar, caso a caso, as investigações criminais que se justifiquem.

Não quero acreditar que num país que tem sofrido todos os anos o que nós sofremos com os incêndios não haja esse estudo sistemático. Não quero acreditar, mas também me não surpreenderia muito, sabendo-se o que a casa gasta. Mas se, por milagre o houver, então os seus resultados deveriam ser divulgados. Pelo menos teriam um efeito pedagógico.

Por: António Ferreira

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