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Política

Razão e Região

Os tempos que estamos a viver não são fáceis para quem tem responsabilidades políticas. São tempos de grande exigência. Convocam coragem, criatividade, capacidade estratégica, competência técnica e saber. E sensibilidade social. Não são tempos propícios para aqueles que têm da política uma visão meramente instrumental e que vêem as funções institucionais como simples alavancas de poder ao serviço de interesses ou de idiossincrasias pessoais ou de grupo. Pelo contrário, são tempos que exigem uma visão estratégica da própria política, um pensamento estruturado, ideias claras sobre a sociedade e, sobretudo, profundo apego aos valores públicos. Não são tempos que se compadeçam com meros jogos de poder sem outro conteúdo que não seja o de alcançar a cadeira do poder.

Os partidos políticos continuam a ser, até prova em contrário, os sujeitos fundamentais da acção política democrática. Eles são como os grandes meios de comunicação, que continuam, apesar da Rede, a ser o grande motor da «comunicação de massas», com todo o impacto que esta tem no cidadão. A simetria é quase perfeita. Mas a verdade é que os partidos começaram há muito a perder o monopólio da representação. Para os media e para os movimentos. Mas estes já não são como os antigos: lentos, persistentes, estáveis, estruturados por causas intemporais. Os movimentos de hoje nascem e morrem ao ritmo de um bater de tecla: são rápidos, fugazes e podem ganhar, de um dia para o outro, uma expressão mundial. E surgem em torno de palavras de ordem sugestivas, às vezes sem grande sentido. Veja-se, por exemplo, «Os indignados». Simplesmente: «In-di-gna-dos!!!». Com quê? Com a política institucional em geral? Com o capitalismo financeiro? Com quê? Não se sabe muito bem. O que se sabe é que «Indignados!» é uma fórmula de sucesso. Mistura raiva com ética: sobressalto moral. É isso mesmo: sobressalto moral é o que o movimento «Os indignados» quer promover. Claro, o que está na linha de fogo é o mesmo de sempre: a política institucional e o capitalismo, agora sobretudo financeiro, «de casino». Precisamente como o movimento «antiglobalização». Ambos se definem, pela negativa e de forma indeterminada: «(in)dignidade», num caso; «(anti)globalização», no outro. São, na verdade, movimentos diferentes e usam de forma cada vez mais expedita os novos meios de comunicação. O meio dominante hoje é a «rede social», comunidade que se constrói através da activação da comunicação em rede e que está ancorada na ideia de comunicar por comunicar, numa interacção algo fragmentária ao nível dos conteúdos. Ao ponto de, por exemplo, os blogues hoje já parecerem espaços editoriais arqueológicos quando comparados, por exemplo, com a força e a forma do «Facebook». É aqui que está a acontecer um imenso movimento magmático que ameaça a centralidade dos media convencionais, tal como pode ameaçar as formações políticas tradicionais, como os partidos, por exemplo. Sabemos que, no caso dos media, a reacção se está a traduzir na tentativa de colonização do espaço reticular, não só através de uma migração maciça para a rede, mas também através de uma espécie de fagocitose comunicacional. Por outro lado, sabemos que a política – que continua fortemente colonizada pelo poder mediático, desde o nível operativo do discurso até à confiscação mediática da própria representação – já está também a migrar para o mesmo espaço reticular, adoptando os seus canais de comunicação, até como instrumentos de libertação do jugo mediático. Ou seja, a comunicação ocupou o centro do sistema político, desenvolvendo-se agora não só nas velhas plataformas, mas também, e cada vez mais, nas novas plataformas da Rede. Só que, e isto é que continua a ser decisivo, a lógica ainda dominante neste processo é a velha lógica das grandes organizações, sejam elas mediáticas ou políticas, persistindo, por isso, infelizmente, o velho atavismo orgânico e fechado. A resistência às «primárias abertas» é disso um claro sinal.

Ora, o que acontece é que a Rede introduziu na realidade social uma lógica de novo tipo, muito mais ampla do que a lógica das grandes organizações, mas sobretudo mais amiga do indivíduo singular, precisamente porque ela é um espaço realmente configurado à medida do utilizador individual: suscita nele activismo; é livre e gratuita; interpela o indivíduo singular enquanto tal, exigindo-lhe, de resto, uma precisa identidade; funciona no plano horizontal; não hierarquiza; trata os utilizadores como variáveis independentes; é universal e instantânea; é complexa e desenvolve qualidades emergentes como resultado das infinitas interacções que nela acontecem, não sendo, pois, identificável como mera projecção de uma qualquer subjectividade, nem sequer da própria administração. Não é, claro, um «admirável mundo novo», mas ela já está a transformar radicalmente as nossas sociedades. E, tal como os media já estão a fazer as contas com a Rede, também os partidos terão de as fazer. E muito mais radicalmente, se não quiserem ver-se ultrapassados por movimentos que, nascidos à imagem e semelhança da rede, não dispõem, todavia, daquela consistência e organicidade social que sempre impede, e bem, a política de perigosas fugas para a frente. Ou se não quiserem continuar a sofrer a lenta, mas implacável, erosão induzida pelo velho atavismo orgânico. E esta mudança é tanto mais necessária quanto, infelizmente, continuamos a deparar-nos com personagens da política que não têm, como sua linha de horizonte, mais do que a casa daquele vizinho que pode servir de eleitor útil quando chega a hora de conquistar, mais uma vez, a cadeira do poder. Para quê? Isso, depois, já não interessa. Aconteça o que acontecer.

Por: João de Almeida Santos

* O autor escreve de acordo com a ortografia antiga

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