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Pias, santuários e sacrifícios (I)

Nos Cantos do Património

No século I antes de Cristo Estrabão escrevia: “Os lusitanos fazem sacrifícios e examinam as vísceras sem as separar do corpo; observam, desta forma, as veias do peito e adivinham tacteando. Também examinam as vísceras dos prisioneiros cobrindo-as com capas. Quando a vitima cai pela mão do sacerdote fazem uma primeira previsão inspirada na queda do cadáver. Amputam a mão direita dos cativos e consagram-na aos deuses.”

Estes rituais de sacrifício, descritos por Estrabão na viragem do milénio, eram muito antigos. Sabe-se que desde, pelo menos, o final da Idade do Bronze as comunidades que habitavam a Beira Interior realizavam grandes banquetes comunitários que reuniriam todos os elementos de uma aldeia ou de várias povoações limítrofes e poderiam envolver o sacrifício ritual de animais.

Os elementos arqueológicos relacionados com estes rituais não são fáceis de identificar. Já nesta mesma coluna escrevemos sobre os raros espetos articulados em bronze encontrados em alguns povoados habitados durante o primeiro milénio a.C. e, certamente, utilizados nessas cerimónias públicas. Os espetos estão, normalmente, associados a restos de caldeirões igualmente em bronze e a outros objectos cuja funcionalidade é mais difícil de apreender.

Já na época romana alguns rituais de sacrifício aparecem associados a pias ou tanques rupestres. Neste tipo de tanques, a ligação entre as diversas cavidades é estabelecida através de canais superficiais. É o que existe no santuário romano de Panóias, em Vila Real, provavelmente o mais famoso santuário rupestre da época romana no território nacional. Deste magnífico santuário apenas restam algumas inscrições gravadas nos penedos e muitas pias, algumas delas com ligações através de pequenos canais ou sulcos. Sobre os pequenos com as inscrições e as pias poderia haver um templo mas, actualmente, não há qualquer vestígio do mesmo.

A função destas pias abertas nos rochedos de Panóias podia ser, segundo Leite de Vasconcelos, para a imolação de animais às divindades adoradas naquele recinto sagrado. As vítimas sacrificiais eram queimadas em algumas dessas bacias enquanto o sangue e as gorduras escorriam pelo canal para uma segunda bacia. Alguns rochedos têm uma só cavidade enquanto noutros se escavaram diversos tanques que comunicam uns com os outros através de canais.

O recinto sagrado foi datado da época romana. Diversas inscrições latinas foram mandadas gravar nos inícios do século III depois de Cristo pelo romano G. C. Calpúrnio Rufino. As inscrições votivas dedicadas a Cibele e Átis fazem referência ao sacrifício de animais e ao derramamento do sangue sobre as pias. O texto é o seguinte: “G.C. Calpurnio Rufino consagrou, com este templo, aos deuses e às deusas, e a todos os “numes” em geral, e também aos das “Lapiteas”, num tanque indestrutível, onde as vítimas se queimam segundo o voto.”

Não raras vezes, durante a prospecção arqueológica, os investigadores lograram identificar muitos tanques escavados na rocha que, em geral, são interpretados como lagares de vinho ou de azeite. No entanto, haverá tanques com características muito específicas que não se destinavam ao fabrico desses produtos tão característicos da alimentação mediterrânica pois escapam à tipologia dos lagares mais comuns.

Por: Manuel Sabino Perestrelo

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