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Perder o pé

A expressão designa o que sucede aos que, tendo vogado um dia com o sopro do vento, ou flutuado no topo das águas, de repente se acham sem eixo, ou sem sítio onde pousar. “Perder o comboio” constitui por isso bem mais dramática falta, a marcar aqueles que nunca chegarão ao estatuto do “has been” porque de facto, e simplesmente, jamais alcançaram ser.

Eu leio muito do que respeita aos trabalhos que trago entre mãos, boa parte das obras que me enviam, diversos originais que me pedem que julgue, mais aquilo que vai saindo, e que me palpite conformar objecto de interesse. Mas apetece-me crescentemente cultivar, ou recultivar, o convívio com quanto ficou para trás, e pertence à área do que teima em persistir, isto em detrimento do que se inscreve na fluidez do instante. Perder o pé? Não há perda que não redunde em ganho, e nem sempre a permanência do futuro valerá a eternidade do passado.

Confesso que os jovens jarretas, curvados sob o uniforme de membros do Parlamento, me entristecem tanto como me irritam os velhos rapioqueiros, impantes na sua crista besuntada de gel. Poderia citar engraçadíssimos exemplos, a ilustrar esta pobre metáfora, mas forço-me a abster-me da proeza, aconselhado por razões de caridade, quando não de compreensível auto-estima. Qualquer sujeito se justifica como mais lhe apraz, e estar no hoje, ou no amanhã, se não obedece a um fatalismo caracterológico, resultará porventura de escolhas que cabem na cartilha dos inalienáveis direitos dos cidadãos.

De vez em quando falha-me o nome de um pintor que me dizem superconsagrado, o título de um romance que me garantem ter bloqueado a temporada transacta, de um filme sublime em que não reparei, de um inesquecível concerto, ou de um espectáculo teatral de eleição, a que não assisti. Mas não tarda a que me veja absolvido do lapso, ou do esquecimento, pela charrua do tempo em que seguimos, a qual apaga a menor florescência da autoria, reduzindo a avassaladora oferta da criatividade humana a um zumbido de enxame que voasse nos múltiplos sentidos do quadrante, e que em breve se silenciará sem cortiço que o sustente. É assim que reverto a valores seguros, indo desembocar na releitura, ou na reaudição, quando não na empolgante descoberta do que não enxerguei na altura devida.

Francis Poulenc costumava propor aos seus colegas compositores, concluída a escuta campestre dos produtos do grupo, que volvessem a Mozart, com vista a “lavar os ouvidos”. E eu não resisto a apegar-me a conselhos afins, quando me sugerem, consoante aconteceu com uma recensão recente do ‘New York Times Review of Books’, que encare ‘Les Misérables’, de Victor Hugo, como uma cedência à tentação do impossível. Impossível por impossível, não me espanto por andar a preferir o que o trânsito dos séculos avalizou.

Philip Larkin levou os últimos anos de lucidez a olhar para um televisor com singular apego infantil, tineta de que não se ressentiria a escrita em que se obstinava. E eu não me julgarei acima dele, se continuar consciente comandante, e não fruto da rasura de um aparelho intromissor. Que importará ao fim de contas que o pé se me assente sensatamente no chão?

Se quisesse consignar aqui um provérbio, sibilino quanto baste, e “ad usum” de vários delfins, largaria uma coisinha tosca, deste género, “Cada homem consigo mesmo, cada coelho com a sua toca”.

Por: Mário Cláudio

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